Todo o Mundo Canta
Texto baseado no artigo “25 anos no palco e no disco” publicado na revista “KCultura” (2000, edição comemorativa dos 25 anos da independência de Cabo Verde).
Por Gláucia Nogueira
Em setembro de 1982, a Juventude Africana Amílcar Cabral (JAAC-CV) organizou pela primeira vez o concurso Todo o Mundo Canta, para descoberta de novas e melhores vozes; valorização da cultura nacional; convívio entre os jovens cabo-verdianos residentes no país ou no estrangeiro; e romper com a rotina, de acordo com um texto da JAAC publicado em 1985 no jornal Voz di Povo.[1]
Nesse ano zero, realizado só em Santiago, o vento chega a reunir 70 inscritos e atrai grande público ao então recém-construído Parque 5 de Julho, na cidade da Praia. O jovem Calu (Carlos Eduardo Lopes), de 18 anos, além do primeiro prémio recebe a alcunha que até hoje mantém, Calú Bana, pela semelhança da sua voz com a do consagrado cantor Bana.
A organização é confrontada já nessa edição com a exigência, por parte da opinião pública, de uma versão nacional, “que ao que tudo indica seria algo de muito especial em termos de trabalho de base na promoção da música cabo-verdiana”, lê-se no Voz di Povo[2].
Sete meses depois, já em 1983, António Marques Lopes, representante de São Nicolau, vence a primeira edição de âmbito nacional, à qual apenas a ilha do Maio esteve ausente, por dificuldades materiais para a realização da fase regional.
Apontado como o evento de maior peso entre as atividades da Semana Nacional da Juventude (realizada anualmente pela JAAC-CV) naquele ano, o concurso irá ao longo de uma década atrair multidões, desencadear polémicas, atrair centenas de concorrentes e revelar alguns talentos que vieram de facto a afirmar-se como intérpretes e compositores da música cabo-verdiana.
Nomes como Mirri Lobo (segundo lugar em 1983), Mário Rui (participante assíduo e segundo lugar em 1990), Mário Lúcio Sousa (representante dos estudantes cabo-verdianos em Cuba, em 1987), Sãozinha (vencedora em 1985, pela comunidade nos Estados Unidos), Jorge Neto (primeiro lugar em 1987, proveniente da Holanda) são apenas alguns entre muitos que tiveram no Todo o Mundo Canta o pontapé de saída das suas carreiras.
Alguns compositores também se revelaram nesse caminho, como Antero Simas (prémio de composição, instituído em 1987) e Djô d´Eloy (com composições interpretadas por vários concorrentes em 1985 e 1986), entre outros.
Do Abel Djassi, grupo que ano após ano acompanhou as apresentações dos concorrentes às finais, emergiram nomes que mais tarde vieram a se destacar no cenário musical cabo-verdiano, como, entre outros, o compositor e multi-instrumentista Kim Alves e o saxofonista Totinho.
A participação dos emigrantes – nos Estados Unidos, Senegal, Holanda, Portugal e Itália – é também digna de destaque, com candidatos provenientes de concursos realizados nas comunidades, alguns dos quais – caso de Sãozinha e Jorge Neto – saíram vencedores da finalíssima.
Mas mesmo entre os outros, a mobilização nos países de residência teve os seus frutos. A edição de 1986, “deixou uma recordação favorável ao concurso e talvez tenha sido o mais expressivo em termos de gravações, quer em discos, quer em cassetes”, afirmava um responsável da organização em 1987.[3]
O concurso Todo o Mundo Canta serviu também para o debate sobre a tradição e as influências externas na música cabo-verdiana, questão já presente no festival de 1979, quando a música apresentada pelo grupo Voz di FARP suscitou dúvidas. O trecho a seguir evidencia esse debate:
“Cabo-verdiana, disseram uns. Estranha, contrafirmaram outros. Contudo, recorde-se que o manual das normas do festival dizia música cabo-verdiana exclusivamente, sem acrescentar se tradicional ou não. E a música cabo-verdiana tem liberdade de criação ou não? E tem também de «copiação». Quem nega?”.
ST, Mini-festival: Ficámo-nos a perguntar se a música… Voz di Povo, 14.03.79.
Em 1986, um artigo no Voz di Povo, referindo-se às baixas classificações dos que apresentassem “músicas susceptíveis de confundir os mais conservadores” questionava se a questão de fundo não seria um conflito entre gerações. Estava em questão o jovem rasta César Silva, que para melhorar a sua pontuação “deverá evitar géneros susceptíveis de causar dúvidas (…) tentar seguir à letra o regulamento, o que é o mesmo que tentar satisfazer o júri, o qual é composto por gente de outra geração, que segue a linha tradicionalista” [4].
Mas César “pelos vistos, não está disposto a vergar-se perante o júri, que não o compreende”, afirma o mesmo texto, lembrando também que a quase totalidade dos concorrentes, assim como o público presente nas sessões do Parque 5 de Julho, “é constituída por jovens, enquanto o júri é formado por gente com mais de uma geração de avanço”.
O irreverente Sana Pepers, com o seu “reggae acrioulado” e “uma batucada que diz ser coladeira”[5] foi também, em mais de uma edição do concurso, o contraponto à atitude conservadora.
Com polémicas e controvérsias pelo meio, a cada ano o concurso de vozes conquista maior expressão. Quanto ao número de inscrições, de 82 nas eliminatórias na Praia em 1985, passa-se para mais de 100 em 1987; de 56 candidatos em São Vicente em 1986 passa-se para 80 em 1989. Em termos de público, são cerca de 7 mil espectadores no início da fase nacional em 1985 e entre 8 a 10 mil no ano seguinte, segundo os relatos do Voz di Povo.[6]
Contudo, no primeiro ano da década de 1990, a era do Todo o Mundo Canta aproxima-se do fim: quando pela primeira vez a final nacional não se realiza na Praia mas em São Vicente, o concurso tem a sua última edição nos moldes em que vinha sendo organizado desde 1983. O ano de 1991 passa em branco, na sequência da derrota do Partido Africano para a Independência de Cabo Verde (PAICV) nas primeiras eleições legislativas, que determina a extinção da entidade organizadora, a JAAC-CV. Surgiu então a União da Juventude Social Democrata (UJSD). Esta irá organizar em 1992 a última edição do Todo o Mundo Canta, com este nome. Já sem Abel Djassi, mas com Tropical Som, e com algumas novas características, como testes de pré-selecção que restringem o número de participantes[7].
Década de 1990 – Cabo Verde Canta / Feira Cultural
Uma tentativa de retomada do Todo o Mundo Canta, agora sob a denominação Cabo Verde Canta, acontece em 1996, organizada pela ala juvenil do PAICV (JPAI-CV), mas sem continuidade. Nos dois anos seguintes o programa Feira Cultural, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura, propõe-se a recensear todos os grupos culturais existentes, nas áreas de música, dança e teatro. Os grupos Ferro Gaita, da Praia – na altura já a fazer sucesso com o seu primeiro trabalho discográfico – e Serenata, de São Vicente, foram os vencedores.
Todo o Mundo Canta pós ano 2000
Obs.: Como o artigo em que se baseia este texto foi escrito e publicado no ano 2000, não estão aqui incluídas informações posteriores a essa data. Contudo, a história do Todo o Mundo Canta, ou deste nome identificando eventos musicais, continua. Cabo Verde & a Música – Museu Virtual aceita colaborações. Tem dados sobre este tema e quer colaborar? Envie a sua proposta de texto para contato@caboverdeamusica.online.
Ver e ouvir
Referências:
[1] DIP-JAAC-CV, Concurso Todo o Mundo Canta, O mito do super-lucro, Voz di Povo, 29.06.1985.
[2] Concurso Musical “Todo o Mundo Canta”, Voz di Povo, 29.09.1982.
[3] Delgado, Marta, Todo o Mundo Canta: a final coincidirá este ano com a festa da independência, Voz di Povo, 07.03.1987.
[4] Tavares, José, Concorrentes e Jurados: duas gerações em conflito?, Voz di Povo, 19.03.1986.
[5] Tavares, José, A festa anual da JAAC-CV – Todo o Mundo Canta entrou com o pé direito, Voz di Povo, 01.03.1986.
[6] Dados de várias edições do Voz di Povo: Concurso “Todo o Mundo Canta”, 27.02.1985; Concurso Musical “Todo o Mundo Canta”, 29.09.1982; Rosário, Daniel, Em São Vicente: Ibrantino Costa conquistou o 1º lugar no Todo o Mundo Canta, 19.03.1986; No dia 20 – Todo mundo canta!, 15.02.1989; Livramento, Jorge, Festival de vozes ‘Todo o mundo canta, 15.05.1985; Tavares, José, Todo o Mundo Canta-86 – III Sessão Eliminatória – Uma noite de sucessos e desaires, 08.03.1986.
[7] Todo o mundo canta – António da Silva vencedor da 1ª sessão, Voz di Povo, 30.06.1992.
[8] Comissão Organizadora da I Semana de Arte Integrada do Movimento Pró Cultura, Retrospectiva – I Semana de Arte Integrada, Uma experiência de animação cultural, Voz di Letra (suplemento), Voz di Povo, 24.09.1986.
[9] Delgado, Marta, Festival das batucadeiras da ilha de Santiago – Uma iniciativa que merece continuidade, Voz di Povo, 19.03.1988.