Sobre B’tá Saúde (Boxôn)
Por Alcides J. D. Lopes
As formas musicais, os ritmos tradicionais e os tipos de dança praticados nas ilhas de Cabo Verde, ao longo da sua história, estão essencialmente relacionados com dois grandes temas que permeiam a história da nação. O primeiro está diretamente relacionado com os processos de povoamento, ligados a uma história profunda de migrações narrada através de mitos, alegorias e histórias repetidas, recriadas, transformadas através das dinâmicas narrativas compartilhadas entre as pessoas mais velhas e as mais jovens. A segunda remete-nos à tensão sociológica clássica que se estabelece entre o rural e o urbano, bem como na sua transição, desde meados do século XIX e intensifica-se a partir do século XX com o advento das ideias e sistemas políticos republicanos.
Na ilha de Santo Antão, as festas de batismo, crismas, primeira comunhão e casamentos parecem ter sido realizadas costumeiramente durante o ciclo festivo das festas de romaria, entre os meses de maio e junho, durante as conhecidas festas de Kolá. Entretanto, os casamentos continuam sendo celebrados durante os meses de julho e agosto, durante as férias de verão e durante o fim ou início do ano. Para estes rituais, existem tantas narrativas quanto a variedade de caminhos vicinais que concorrem entre si para estabelecer comunicação de um lugar para outro.
Em algumas localidades, hoje em dia inabitadas, da região sudoeste da ilha conhecida como Sul onde os Barbosas, os Lizardos e os Rodrigues cultivavam suas terras e criavam seus animais, antigamente realizavam-se casamentos cujas celebrações se estendem por dias, senão semanas de festança, nos anos de fartura e bonança.
Entretanto, as carestias sistemáticas causadas pela ausência constante das chuvas na ilha impulsionaram sua emigração quase que total para a ilha de São Vicente e para os países europeus como França e Luxemburgo, principalmente, em decorrência da grande fome da década de 1940.
Ainda hoje, durante os ciclos festivos de Kolá Son Jon, bandeiras são fixadas nas casas dos familiares e parentes, quando se anuncia um casamento. Um grupo de mulheres, geralmente contratadas pelos familiares dos noivos “botam à saúde” [btá saúde]. Este tipo de evento acontece tanto à capela, como acompanhado de instrumentos de paus e cordas e chocalhos.
Em Porto Novo havia um tocador de violão e cavaquinho, Nhô Ambrósio das Marcelas. Outra localidade hoje abandonada. Ele, como os outros músicos, fabricavam as suas tarraxas de madeira, as quais eram pressionadas contra os furos feitos na mão do instrumento As cordas dos instrumentos eram fabricadas a partir das tripas de cabra ou ovelha. Na maioria das vezes, estes músicos e artesãos fabricam seus instrumentos com o mínimo de condições técnicas e materiais disponíveis. Por este motivo, como já alertou Vasco Martins com relação à afinação dos violões para tocar a morna, existe uma variação de afinação inerente às condições sob as quais este tipo de música é produzido.
Um grupo de músicos que acompanha b’tá saúde pode variar em número de instrumentos, mas não tanto nos tipos. Geralmente, acompanham três ou quatro violões, dois cavaquinhos, uma rabeca ou violino e um par de maracas. As canções, como aquela de Nhô Miguel Pulnâro, a mais conhecida, estão em tonalidade maior e são entoadas por uma solista e um coro de ronkaderas que respondem em cadência uníssona com as sílabas “Oh lê lê lê lê”. O coro das ronkadeiras, por sua vez, varia de acordo com a melodia cantada pela solista. Certas melodias e letras, quando cantadas pela cantadeira, provocam diferentes tipos de respostas por parte das vozes coordenadas das ronkaderas. Em sua essência as temáticas exploradas nos versos das canções remetem à boa vida conjugal. Clamam ao respeito mútuo entre os noivos, exaltam as qualidades dos indivíduos e das suas famílias como um todo que ali celebram a união conjugal.
É, neste sentido, auspicioso esclarecer as variedades de melodias que subscrevem o gênero mais comumente conhecido como boxôm. O pentagrama acima realmente registra a melodia mais conhecida deste estilo. Importante notar que as funções de cantadeira e das ronkaderas (coro), neste exemplo, se encontram fundidas. O álbum de Nha Antónia d’Aninha é rico no que tange algumas variedades destas formas musicais. A harmonia de acompanhamento deste gênero geralmente baseia-se numa sequência I-V, com cadências perfeitas.