O rock nas ilhas de Cabo Verde: influências e caminhos
Por Joaquim Arena*
Falar do rock em Cabo Verde é falar, sobretudo, do Festival Grito Rock, que encontrou o seu espaço próprio no calendário dos vários eventos musicais que acontecem, na cidade da Praia, todos os anos. É aquilo a que muitos chamam de espaço de música alternativa aos estilos naturais produzidos nas ilhas: morna, coladeira, funaná, batuque, etc. À sua volta, o Festival Grito Rock vem reunindo, desde 2014, todos os aficionados do rock da capital do país e não só. Basta pensar nas várias dezenas de bandas que já passaram pelo evento, oriundas de países como Portugal, Brasil, Espanha, Marrocos.
Grito Rock de Cabo Verde integra o festival internacional, que leva o mesmo nome, que acontece em vários países do mundo. Uma vez por ano, pelo mês de Março, as chamadas bandas de garagem da Praia saem dos seus bairros para curtirem o som forte das guitarras e dos solos, encontrar outros músicos, trocar impressões, reencontrar o seu pequeno público, e dar azo ao prazer do som metaleiro e em distorção. A ideia é recriar o ambiente vivido noutros festivais do género, na Europa e nos Estados Unidos.
Se quisermos recuar para perceber a entrada deste género em Cabo Verde, veremos que está diretamente ligada a outro festival de boa memória para os mais velhos: o Woodstock (agosto de 1969, no estado de Nova Iorque). Anos depois, o filme deste histórico concerto circulou o mundo, chegando às telas do Éden Park e do cinema Miramar, em Mindelo.
Se alguns grupos anglo-americanos já eram ouvidos, através dos discos trazidos na mala pelos emigrantes, o festival Woodstock teria enorme impacto entre os mais jovens. Nos inícios dos anos de 1980, alguns destes melómanos locais decidiram reproduzir, na praia da Laginha, em Mindelo, e depois na Baía das Gatas, um festival que pudesse ter o mesmo efeito junto do público.
Mas é interessante verificar como os jovens de São Vicente já estavam a par daquilo que se vinha produzindo, quer em Inglaterra, quer nos Estados Unidos. Antes mesmo de aprenderem a tocar guitarra ou bateria, muitos já ouviam os Rolling Stones, Beatles, Elvis Presley, Creedence Clearwater Revival, entre outros, na Rádio Barlavento, no programa Juventude em Foco. Quanto ao rock americano, artistas do soul da Motown, como Ottis Reading, James Brown e Percy Sladge, passavam nas manhãs de domingo e encantavam futuros músicos mindelenses, como Vasco Martins, Tolas, Pomba, Pinúria, Vlu, Tey Santos, Teck.
Anos 1970-1980
Nos anos de 1970, dá-se a chegada dos vários estilos do rock: psicadélico, hard rock, rock progressivo, rock sinfónico, das bandas inglesas: Led Zeppelin, Genesis, Pink Floyd. Alguns desses jovens vão formar o grupo Kwela Tabanka, em 1974, que irá tocar nos intervalos de atuações de Luís Morais, em experiências musicais que os levam pela fusão destes estilos de expressão inglesa com o jazz de Chick Korea, Wheather Report, Return to Forever.
Ainda no campo das influências, estas são as primeiras experiências, as primeiras incursões pelo som alternativo ao tradicional. Embora não seja suficiente para produzir grupos exclusivamente dedicados a este género musical, irá certamente contribuir para trazer novas visões e janelas musicais, que os farão estar entre os músicos das ilhas com mais bases. São os casos do compositor Vasco Martins, do baterista Tey Santos, do guitarrista Voginha, do saxofonista Teck e dos guitarristas Tolas e Pomba, os últimos três já falecidos.
Tey Santos, um dos bateristas com maior experiência, que fez parte da maior parte dos grupos surgidos em São Vicente, da banda de suporte de Cesária Évora e do Voz de Cabo Verde e Bulimundo (nas suas fases recentes), recorda como aos 17 anos já ouvia e tocava – ‘’em latas de manteiga ‘’ – o hard rock dos ingleses Deep Purple, dos Led Zeppelin, Jimmy Hendrix e Santana. Conta como desde 1975 já ouvia jazz rock e fusão. E neste último estilo, entravam também os sons que vinham do continente, do African Beat, do nigeriano Fela Kuti e dos Osibisa, entre outros, que fundiram sons da América com ritmos africanos.
Mas as influências do som das bandas inglesas, como Pink Floyd ou Deep Purple, não se ficam por São Vicente. Ela está nos arranjos de várias composições do grupo Bulimundo, na marcação de acordes, de linhas de baixo, do som eléctrico que Katchás ouviu durante a sua juventude, em França e em Portugal.
Ao eletrificar o funaná, no final dos anos 1970, para o trazer do campo para a cidade, Katchás aproximou-o, igualmente, desse som mais vincado do rock. É exemplo disso o tema “Bulimundo”, nas suspensões e acentuações de algumas passagens, assim como o desenho do baixo – emblemático – que dá início ao tema, e nos solos.
O mesmo acontece nalgumas composições d’Os Tubarões. Podemos encontrar um acento rock, de forma mais marcante, no tema “Porton di nos Ilha”, no solo muito ao estilo de Roger Waters (Pink Floyd), que inicia o tema, bem como o “suspense” que se segue, antes da entrada da voz de Ildo Lobo.
É igualmente audível a influência da guitarra elétrica e dos solos que bebem no rock em algumas passagens de Paulino Vieira, nos anos de 1980, em várias gravações suas ou de outros artistas. O músico de São Nicolau foi dos primeiros a fazer uso, na música de Cabo Verde, da guitarra de som mais distorcido. Nos inícios de 1990, iremos encontrar esse mesmo som em várias composições dos Livity, através da guitarra de distorção de Johnny Fonseca.
Do lado dos aficionados, o rock e o pop tornaram-se a paixão de várias figuras conhecidas, entre elas, Sana Pepers. Professor de Vela no antigo Clube Náutico da Praia e técnico do Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inida), foi o responsável pela descoberta dos Beatles (batizou, inclusive, o único filho como John Lennon) e dos Rolling Stones por parte de vários jovens, assim como bandas como Deep Purple. Foi o fundador do grupo Os Relâmpagos e criou o duo Sana e Djuly.
Muitos jovens da capital tiveram o seu primeiro contacto com o rock através dos espetáculos que ele organizava no cinema do Platô. Sana Pepers – nome que resulta do álbum dos Beatles Sargeant Peppers Lonely Heart Club Band, de 1967 – era fã incondicional do grupo de Liverpool. As suas actuações e composições eram caracterizadas pelo lado cómico e burlesco, como demonstra a música, em estilo blues, “Mininu na Panela”.
Aliás, este é um dado curioso que também encontramos no cantor Mota, ex-emigrante, natural de Santo Antão, em temas como “Catchupa que pêxe frit”, e “Mim q’fome mi ê pior que Juquim”. É o humor que sobressai nestas interpretações rock e blues, como que desqualificando, à partida, qualquer ideia de qualidade musical. Na verdade, serve mais como base para passar a mensagem, a piada, do que pela música em si, seguindo as regras do burlesco.
Anos 1990
É a partir de meados dos anos de 1990, que a cena rock em Cabo Verde começa a ganhar uma expressão mais genuína e local. Músicos e bandas, sobretudo de São Vicente, assumem este estilo, em especial influenciados pelos sons do grunge americano, que chegam pela voz de Kurt Cobain, dos Nirvana. A banda de Seattle faz sucesso em todo o mundo. Alguns jovens de Mindelo tornam-se seguidores fiéis deste estilo, que mistura os acordes suaves da guitarra acústica, com explosões violentas de distorção e voz embriagada.
A nova geração de músicos do Mindelo vai reunir-se para seguir estes sons, desligados de qualquer estilo tradicional. A referência são bandas como os Nirvana, Oasis, Smashing Pumpkins. Este período marca, igualmente, adesão ao heavy-metal, atraídos pelo som dos Iron Maiden, Scorpions e, sobretudo os americanos Metallica, este último responsável pela constituição dos primeiros grupos de rock da ilha. Aqui, o destaque vai para o grupo Freak, formado em 1995, no Mindelo, liderados por Mário Coronel e Spenk, que se vão manter, ao longo dos anos, como o núcleo principal desta banda.
O surgimento do grupo é uma das expressões do clima de grande abertura cultural e social que se vive nessa ilha, nesse período, que coincide com o surgimento de mais espaços com música ao vivo, como o Café Musique, na Rua de Lisboa, o Porão, na Marginal, ou o bar do Mindel Hotel. Muitos desses concertos que tiveram aqui lugar, nesse período de transição para o século XXI, podem hoje ser revistos em vídeos no Youtube, em especial da banda Freak, onde pontuou, também, um dos mais promissores talentos da guitarra da época, Hernani Almeida.
O grupo participou em 2002 no Festival da Baía das Gatas, começando a constituir um grupo de fãs à sua volta, passando a ser a principal referência do rock feito em Cabo Verde. O seu aparecimento coincide com o advento da internet e depois do Youtube e outras redes sociais, o que permite acompanhar a evolução da banda, do seu estilo, inclusive de sessões de ensaio na sala da residência de um dos seus membros, quase ao estilo documentário. Os registos vão até ao ano de 2016, num concerto no restaurante Dokas, em Mindelo. Nesses registos pode-se constatar também a participação pontual de vários músicos de rock, que passaram pelo baixo, guitarras ou bateria, e que podem ser vistos nos diversos vídeos na página oficial do Freak. Outro grupo dessa época, também em São Vicente, é o What, pelo qual passou Hernani Almeida. Refira-se ainda, nos anos 1990, bandas precursoras desse despertar para o rock, como Experience, Climax, Hair Gand e Names, que não ficaram muito conhecidas.
É também de destacar o músico Zé Galvão, que emigrou de Pedra Badejo – onde foi vocalista e baterista do grupo Strongs – para os Estados Unidos, em finais de 1980. Aqui participou em vários projetos musicais, como os grupos Uprising e Os Pecos Band. A partir de 2015, integra a banda de rock Narkotx, de som marcadamente internacional, quer no ritmo quer nas melodias – apesar de cantar em crioulo – tocando baixo e como vocalista e compositor, naquela que é, talvez, a banda mais representativa do rock crioulo na diáspora.
Anos 2000
Podemos dizer que o Festival Grito Rock – principal referência deste género em Cabo Verde –, que se realiza na Praia desde 2014, é uma consequência direta do ambiente vivido à volta do rock, nos finais dos anos 1990 e inícios de 2000, na ilha de São Vicente, e depois na capital do país. E aqui o protagonismo vai para o grupo Primitive, fundado na Praia, em 2003, por César Freitas (baixo e voz), Bruce Silva (voz principal e guitarras) e Raul Monteiro (bateria), que se mantém ainda no ativo. A banda está na origem do Festival Grito Rock. Atualmente, o Primitive é uma das bandas de rock mais conhecidas das ilhas.
César Freitas, o mentor da banda, embora natural da Praia, cresceu na ilha do Sal, onde ouvia muito rock, bandas como Pink Floyd, Metallica, Nirvana, e cujas músicas aprendeu também a tocar. E é o próprio César Freitas que recorda como, depois da participação da banda numa edição do Festival Grito Rock no Ceará, no Brasil, surgiu a ideia de realizar este evento na cidade da Praia, com o apoio do então ministro da Cultura, Mário Lúcio.
Vale a pena determo-nos um pouco neste conceito de festival internacional, que procura estimular o convívio entre os amantes deste género musical alternativo, o intercâmbio de músicos nacionais e internacionais, um pouco por todo o mundo. Tendo começado em 2002, o festival ganhou dimensão internacional, alcançando cerca de 400 cidades em 40 países, até chegar a Cabo Verde, em 2014. Desde então, o Largo da Pracinha da Escola Grande, no Platô, é o espaço de eleição para os amantes do rock, no Grito Rock Praia. O evento é organizado pelo ARTIKUL CJ (produtora criada por César Freitas e Ricardo Teixeira) e acolhe diferentes bandas, nacionais e internacionais, todos os anos, no mês de Março.
“É quando os jovens que tocam este tipo de música podem mostrar o seu trabalho, num palco à sua disposição, com público especial, à semelhança daquilo que vemos lá fora – incluindo os nossos grupos de mosh (a prática dos saltos, em mergulho, do palco sobre o público)”, como explica. César adianta que este é dos poucos momentos em que os rockers crioulos podem tocar ao vivo, já que não existe no país mercado ou circuito para este género musical, apesar do número cada vez maior de seguidores. “Outro problema é que estas bandas, por norma, não duram muito, pois os seus membros viajam, por vários motivos, especialmente para continuarem os seus estudos, fragmentando-se.”
O festival, que já consta no orçamento anual da Câmara Municipal da Praia, homenageia, em cada edição, um músico cabo-verdiano, independentemente do género musical. Mais recentemente, evoluiu também para o chamado Mini Grito, com a participação de grupos culturais infantis, de escolas da cidade. Para lá do envolvimento no Grito Rock Praia por parte dos seus membros, o grupo Primitive mantém-se no ativo, tendo celebrado, em 2018, os 15 anos de história através do lançamento do seu primeiro trabalho discográfico, Odju Ki ta Txekau, do qual extrairiam em singles os temas “Paranóia” e “Pamodi” – este último quando se assinalou os 18 anos da banda, em 2021.
Outro destaque, neste género musical específico, vai para a proposta que chega de São Vicente, liderada pelo jovem guitarrista Danilo Cruz, um dos fundadores da banda Krad, de rock/metal, com um primeiro single, Scorpion, de 2020. O trio, constituído por Danilo Cruz, Marino Mota e Valter Marques, apresenta este tema através de um videoclipe realizado, na maior parte, no interior do vulcão de Viana, em São Vicente.
As imagens jogam com a aridez, a paisagem lunar e misteriosa, com perspetivas aéreas, destacando o contraste e as tonalidades do meio em volta. A banda conta já com duas participações no festival Grito Rock Praia e numa das edições do festival Baía das Gatas. Apesar de terem nascido em 2009, com um estilo predominantemente acústico, os Krad evoluíram, nos últimos anos, para o hard rock/heavy metal, cantado em crioulo.
O caso de Ilo Ferreira, jovem músico natural de São Vicente, que surge em cena no início dos anos 2000 e que adotou uma linha de pop, country rock, em inglês e em crioulo, tem contornos muito peculiares. Para quem conhece as composições do pai, o compositor Vlu, profundamente marcado pela pop dos Beatles e de outros nomes ingleses e americanos, encontrará todas as influências do progenitor no som de Ilo. No entanto, a história da relação de Ilo com o country rock tem contornos de conto de fadas, que costuma encantar muita gente. Quando tocava nos bares de Mindelo, em 2007, Ilo teve um encontro inusitado com o músico de country americano, Jimmy Buffett, que estava de passagem por São Vicente, a caminho do Mali.
Conta a história, na página oficial de Ilo, que, ao percorrer os bares e restaurantes da cidade, o americano ficou impressionado quando ouviu o jovem cabo-verdiano, numa atuação apenas com uma guitarra – sem que, ao que parece, Ilo tivesse a mínima ideia para quem estava a tocar. Jimmy Buffet regressa aos Estados Unidos, impressionado, e consegue cativar alguns executivos de uns estúdios com a gravação que fizera em Mindelo. O resultado é que, semanas depois, o jovem Ilo Ferreira estava num palco a tocar para mais de seis mil pessoas, com várias datas para espetáculos, nos Estados Unidos. A história pode ser lida, com todos os pormenores, na página oficial na internet, através de um texto de Bill Flanagan, intitulada, “Finding Ilo” (Ao encontro de Ilo).
Personagens ligados ao rock em Cabo Verde
Apesar de ser relativamente recente a existência de grupos exclusivamente dedicados ao rock, nas ilhas, a verdade é que este estilo musical foi sendo tocado, quer em São Vicente, quer na Praia, pelos seus mais diretos aficionados. É de destacar os irmãos Pomba e Tolas, de São Vicente (já falecidos), ambos guitarristas (Pomba também baixista e trompetista), que desde o final dos anos 1960 integraram a maior parte dos projetos musicais surgidos nesta ilha.
Tolas era especialmente conhecido como um dos melhores guitarristas rock que Cabo Verde conheceu. Foi dos primeiros a aprender a técnica de solo de blues, de nomes como Jeff Beck, Eric Clapton, Jimmy Page, David Gilmour, tornando-se uma referência nas ilhas. Voginha surge também como um dos melhores guitarristas de sempre em Cabo Verde. Para além do estilo tradicional que pratica, o músico é conhecido pela sua técnica das escalas do jazz rock fusão, tendo como referências John Scofield, Al Di Meola, John McLaughlin.
Outros guitarristas de renome são o já referido Hernani Almeida e o jovem Vamar Martins, este último filho de Vasco Martins. Em ambos é nítida a influência, sobretudo, do lendário guitarrista americano Pat Metheny. Nos anos 1990, o guitarrista Alberto Santos Silva, antigo funcionário do Centro Cultural Francês, atualmente a residir nos Estados Unidos, foi outra referência do rock na capital do país. Santos ficou conhecido como excelente solista e pela sua técnica do estilo Santana.
Atualmente, na Praia, Soren Araújo é um dos guitarristas que mais se destaca no estilo rock, bem como compositor, em língua inglesa, com destaque para o tema “Delirium”. Soren é um apaixonado pelo universo heavy-metal, quer nos sons quer pelo universo visual, poético, estético, contando, igualmente, com uma larga experiência de atuações internacionais.
Hoje, com as redes sociais o acesso aos diferentes estilos musicais é global. Os jovens músicos cabo-verdianos seguem, em tempo real, aquilo que acontece noutras paragens, quais as inovações em termos de sons, de equipamento, de propostas e projetos. Isso facilita, também, o crescimento de um público que segue com interesse aquilo que se vai fazendo pelas ilhas.
O rock crioulo, embora ainda apelidado de “estilo alternativo”, deixa, cada vez mais, de ser um estilo marginal, para ocupar o seu espaço, numa lógica de abertura e complementaridade da oferta do universo sonoro cabo-verdiano. A tendência será para que o grupo de aficionados continue a crescer, mesmo que lentamente, da mesma forma que o Festival Grito Rock se vem institucionalizando, a cada edição.
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* Texto produzido originalmente para Cabo Verde & a Música – Museu Virtual.