Renado
Por Gláucia Nogueira
A cada ano, no dia 6 de Janeiro, tem início o chamado Renado, ou Reinado, que se verifica no interior da ilha do Fogo e dura até o início da Quaresma. Vestindo capas brancas, três homens (em anos mais recentes reduzidos a dois) partem da igreja matriz e percorrem toda a ilha, a pé, rezando o terço ou abençoando cada casa por onde passam, onde recebem uma dádiva.Um deles leva às escondidas, debaixo da capa, um quadro com a imagem da Virgem Maria e do menino, outro vai com um pequeno tambor. Na Quarta-Feira de Cinzas vão levar a imagem à igreja, para ir buscá-la novamente no ano seguinte.
Segundo Monique Widmer, fundadora da Casa da Memória, em S. Filipe, que compilou referências ao renado num artigo no jornal Terra Nova, existiram no passado 14 desses grupos.
“O que se estará a representar?”, questiona Fausto Rosário, professor e investigador da cultura local. Seria a visita dos três reis magos? A fuga de Jesus menino para o Egito? A imagem, informa, só é destapada dentro de casa, há um certo secretismo. Renado ou reinado quererá dizer “rei mago” ou “rei nado” (nascido)? “Ou será uma recriação de tudo isso? Se for assim, temos uma peça de teatro espantosa, que dura desde o 6 de Janeiro até o início da Quaresma”, comenta Rosário, em entrevista ao jornal A Semana, em 2006.
A origem desta tradição estaria, supõe-se, em antigos sacristãos que, em tempos em que o pároco não podia atender toda a paróquia, tinham a incumbência de encomendar os mortos, cantar as ladainhas e rezar terços nas localidades mais distantes. “São pessoas respeitadas nas localidades, ainda são chamadas para os funerais, para rezar o terço, etc. Rezam-cantam uma ladainha muito antiga, misturando latim, português antigo e crioulo”, refere Fausto do Rosário. Esta fonte conheceu de perto a prática do renado, porque conviveu com Pedro Nacha (que durante muitos anos foi o caseiro do seu avô). Ao falecer, em 2005, era o renado mais antigo.
Em 2021, os dois únicos grupos ainda existentes não saíram a percorrer a ilha na sua peregrinação habitual devido à pandemia de Covid-19, conforme artigo no jornal A Semana.
Imagens de uma homenagem ao renado Nho Tchina, cedidas por Fausto do Rosário
KYRIE – Num pequeno tributo a Nhô Tchina e demais Renado!
Proveniente do Grego, “Kyrie” (Quírie, em português) tem o mesmo valor que o seu equivalente latino “Dominus”, significando Senhor… Tornou-se parte da celebração litúrgica compondo a expressão “Kyrie eleison…”, reconhecendo e suplicando o pecador pela piedade do Deus Omnipotente: “Kyrie, eleison / Christi eleison / Kyrie eleison” (Senhor, tende piedade / Cristo, tende piedade / Senhor, tende piedade). Por vezes, numa versão mais longa, sobretudo na versão cantada, acrescentam-se, depois de “Cristo…”, os versos “Espírito Santo…” (Spiritu Sancto…) e “Santíssima Trindade…” (Sanctissimae Trinitatis…)…
Recitado durante o Terço, nos funerais, nas missas do 3º e 7º dia e outras celebrações afins, tornou-se parte integrante do repertório dos Renado no seu périplo pelas povoações da ilha e nas suas festas de romaria… O que sabiam estes homens simples de devoção profunda das “nuances” da língua grega ou do latim? Todavia, seguindo fielmente os ditames da Igreja, por séculos recitaram as ladainhas, os esconjuros, as preces, sedimentando a devoção popular.
Agentes/atores importantíssimos no processo sincrético que ditou o surgimento da nossa cultura, hoje esquecidos e, mesmo, desprezados, pela própria Instituição que os criou, sendo por vezes escorraçados das igrejas pelos atuais vigários de “Nhor Deus”… Mas vão persistindo… Cada vez mais poucos, cada vez mais esquecidos, cada vez mais velhos, presos indelevelmente, até a morte, à missão que lhes foi confiada: “Kyrie eleison”, para a salvação de todos nós!… Quem recitará o “Kyrie” quando se finar o ultimo dos Renado? Não falta pouco, infelizmente…
Fausto do Rosário, 2012
Referências:
Nogueira, Gláucia. “As festas da fé”. A Semana, maio 2006.
Pina, Alílio Dias de. “A lendária festa bandeirona”. A Semana, 05.08.1006.
Widmer, Monique. “’Renado’ ou ‘Reinados’ da llha do Fogo”, Terra Nova, janeiro de 2005.