Reggae em Cabo Verde
Por Joaquim Arena*
Ao longo do tempo, o universo da música cabo-verdiana foi enriquecido por géneros oriundos de várias paragens, reflectindo a história das ilhas e os diferentes períodos do seu desenvolvimento social, económico e cultural. Foi incorporando sons que lhe eram próximos e familiares, quer na harmonia, quer nos sentimentos que lhe davam alma, assim como as raízes comuns. O mesmo chão do seu processo de formação. A condição mestiça do povo das ilhas – sua identidade cultural – colocou-o na mesma rota de géneros, como a cúmbia, a salsa, o samba, o chorinho, bolero, etc, cujas origens bebem do mesmo caldo do encontro das culturas europeia e africana – em terras americanas.
De entre os vários estilos musicais que penetraram nas práticas musicais dos cabo-verdianos, o reggae, oriundo da Jamaica, impôs-se, de forma gradual, entre os mais jovens, ganhando um espaço cada vez maior e criando um capítulo muito particular.
À semelhança dos estilos sul-americanos referidos, que entraram no universo musical cabo-verdiano através dos marinheiros das ilhas, nas suas viagens pela Colômbia, Panamá, Venezuela, Cuba, Brasil, etc, o reggae seguiu o mesmo caminho, já nos meados dos anos 70 do século passado. Os primeiros discos de Bob Marley e de outros cantores deste estilo chegaram às ilhas via a emigração. Em determinadas situações, como na Holanda e Portugal, entraram nas casas e nos convívios dos cabo-verdianos com forte aceitação, se comparados com os outros géneros sul-americanos. Estes já faziam parte do reportório do Voz de Cabo Verde e dos discos gravados a solo por Luís Morais.
História
Nascido na Jamaica, em especial nos subúrbios de Kingston, o reggae evoluiu do ska, estilo bem mais rápido, com ênfase nos coros e apelativo à dança, que explodiu na ilha no início dos anos 1960. Uma década depois, o mundo começava a descobrir um estilo já mais sincopado e lento, baseado numa secção rítmica forte de baixo e bateria, e adoptando uma filosofia espiritual, nas suas letras, que apelava às raízes africanas, misturando um misticismo bíblico do espaço paradisíaco primordial. Outra das características era a denúncia da opressão e racismo contra o homem negro. É a mensagem musical que Bob Marley e o grupo Wailers, sobretudo, começam a espalhar, com a gravação dos primeiros discos e seguido também de concertos e dos primeiros sucessos.
O público descobre este novo estilo e começa a aderir ao novo som que chegava da Jamaica e com ele a filosofia de vida Rastafari. Mas é a música e o ritmo que criam o ambiente descontraído e ganham cada vez mais seguidores. Em Lisboa e em Roterdão, no final dos anos 1970, ouve-se o reggae de Bob Marley, Burnin’Spear, Peter Tosh, Jimmy Cliff, Third World, entre outros. Na Praia e em São Vicente, são poucos os músicos que o gravam: é apenas tocado em casos pontuais, o que irá mudar com a entrada nos anos 1980.
Em Lisboa, a natural abertura dos músicos cabo-verdianos a outros estilos faz-se notar, em especial nos bailes na sala dos Alunos de Apolo, em Campo de Ourique, e outras na zona central da cidade. Os grupos África Star e Black Power, para além das mornas e coladeiras, passam a interpretar alguns reggaes, como “Get up, Stand Up” ou “I Shot the Sheriff”, de Bob Marley. África Star chega inclusive a gravar “The Love I Need”, em estilo reggae, na voz do seu vocalista Djô.
Tey Santos, um dos bateristas mais antigos em actividade, recorda-se de ter ouvido reggae, pela primeira vez, ainda nos anos 1970, temas de Jimmy Cliff, Bob Marley e Peter Tosh. Mas Santos vai seguir também a linha de fusão da New Wave com o reggae, que surge com o grupo 10CC e The Police, em Inglaterra, e o seu baterista Stewart Copeland.
O músico Manuel de Candinho, que esteve no África Star durante um ano, antes de seguir para a Holanda, fala de vários temas de reggae no reportório do grupo. O mesmo é de assinalar com Os Apolos. Na transição dos anos 1970 para a década seguinte, o ritmo reggae começa a instalar-se entre os músicos das ilhas e nas comunidades da diáspora. O filme The Harder They Come (1972), com Jimmy Cliff como protagonista, será a porta de entrada para muitos músicos para este novo estilo.
Nas ilhas e na diáspora
Apesar de nos finais da década de 1970 o grupo Bulimundo também tocar reggae, nas ilhas, é sobretudo entre os músicos de São Vicente que o estilo é mais adoptado. Dany Mariano recorda que a primeira vez que ouviu um reggae foi no ano de 1968, na então Rádio Barlavento: “Era uma música de Jimmy Cliff, contra a guerra no Vietnam.”
Na diáspora – em especial na Holanda, onde o contacto entre músicos cabo-verdianos e os do Suriname e das Antilhas Holandesas é permanente – havia trocas de conhecimentos e de experiências. Em 1979, durante a sua digressão por alguns países da Europa, para atuações junto das comunidades cabo-verdianas, o grupo Kings, lembra Dany Mariano, já tocava reggae, com cinco músicas deste género no seu reportório. E foi quando comprou e trouxe para Cabo Verde um disco da banda inglesa Steel Pulse. “Mas a primeira vez que ouvi Bob Marley foi em Dacar, em 1977, a música ‘No Woman no Cry’”, recorda. Nesta altura, recorda Dany, o cantor Djuna, do grupo Grito d’Mindelo também já cantava reggae, músicas do grupo jamaicano Third World.
Durante a sua passagem pela faculdade, em Lisboa, nos anos 1970, o baixista mindelense Pinúria (José Luiz Ramos) ouviu Bob Marley pela primeira vez. E em São Vicente, no grupo Kola III, juntamente com o baterista Tey Santos, o saxofonista Teck, o guitarrista Tolas e o vocalista Manu Monteiro, natural de Dacar, já tocavam músicas de Bob Marley. Na digressão que fizeram por Holanda, Itália e Luxemburgo, este género fazia também parte do reportório. “Comprávamos álbuns de reggae e fazíamos sessões de audição, para compreendermos melhor o ritmo. Nas cantinas da Universidade de Lisboa, Instituto Superior Técnico, abrimos os bailes com temas de Bob Marley”, diz Pinúria.
Discografia do reggae gravado por cabo-verdianos
É provavelmente a partir da metade dos anos 1970 que surgem as primeiras gravações de reggae por artistas ou grupos cabo-verdianos.
Os Apolos gravam “My Mistake” (da autoria de Secré) no LP Apolos é Sucesso, de 1977. No ano seguinte, Paulino Vieira transformou num reggae trilingue (inglês, francês e crioulo) a cantiga tradicional de fim de ano “São Silvestre”, e como vocalista do Voz de Cabo Verde, irá gravar “Naufrágio”, um reggae cantado em português, num single que sai em 1982. Ainda em 1978, o grupo Tulipa Negra, com Tony como vocalista, grava no LP Joaninha Namorada os reggaes “Cantu N Tchiga Praia” e “Lonely Streets” (este um sucesso na voz de Jimmy Cliff na época). “Cusè Nu Tem Qui Faze”, na voz de Norberto Tavares, vem no álbum Black Power is Back, de 1979.
A popularidade do reggae no mundo e a sua divulgação em Cabo Verde irá acontecer, em larga escala, ao longo dos anos 1980, sobretudo após a publicação do disco Up Rising, de Bob Marley, pouco antes do seu falecimento, em 1981. Nas ilhas, é nesta década que se dá a afirmação do funaná, electrificado por Katchás no grupo Bulimundo, em finais dos anos 1970 (curiosamente, o grupo vai gravar uma coladeira, em jeito de crítica ao estilo de vida rastafari, intitulada “Rasta”).
Destaca-se, nos primeiros anos da década de 1980, Américo Brito, com o tema “My Country” (LP Sintado Na Pracinha, 1980). Américo, refira-se é irmão de Elias Brito – mais conhecido por Matchona, ou Rasmatchona – um dos pioneiros do reggae em Cabo Verde, e provavelmente o primeiro rastafari de São Vicente e de todo o país. O grupo África Star, em 1982, lança o LP We Sing to Bob Marley, em que há dois reggaes. Dessa época, há também Pedrinho, radicado em Portugal, que canta em francês no LP Nhós Déxa de Conta Mintira (1981) o tema “Dancé reggae” (Black Affairs, nome utilizado nos seus álbuns pelo dominicano Anthony Gussie). Boy Gé Mendes grava com o irmão Jean Claude o LP Mendes & Mendes (1981), em que se inlcui o reggae “Down My Roots”.
Em Cabo Verde, em 1988, “Kebrod nem Djosa” (de Vlú) foi gravado pelo efémero Pedra de Calçada, grupo criado em São Vicente, no LP Apartheid (1988). A composição fizera sucesso no Festival da Baía das Gatas, na primeira edição, em 1984, e em 1985, segundo Dany Mariano, que fez parte do grupo.
A partir dos anos 1990, gravações de reggae podem ser encontradas até mesmo em discos de artistas que habitualmente não são associados a este estilo musical, mas sim à música dita tradicional cabo-verdiana. Por exemplo, no álbum Dzencontre (1996), de Maria Alice há o tema “Falso Testemunho”, da autoria de Toy Vieira. E até mesmo os grandes ícones da morna e da koladera, Bana e Cesária Évora, cantaram na cadência do reggae: “Homem na Meio di Homem” (de Teófilo Chantre e Gérard Dahan) em São Vicente di Longe, álbum de Cize lançado em 2001; e “Nha Cizila” (de Kalú Monteiro), no CD Canto de Amores (2002), de Bana.
Atualidade
Nos últimos anos, surgiram alguns festivais de reggae, nomeadamente em São Vicente. E é aqui também que vai surgir uma das bandas mais importantes do universo reggae cabo-verdiano: Domu Afrika. Constituída pelos irmãos Karantonis, Jorge “Djoka”, Nuno e Luís, após o seu regresso dos Estados Unidos, e tendo como primeiro nome Dub Squad. Na Praia, o reggae ganha cultores como Gamal Kwame Monteiro, com o seu grupo Obá, Bino Santos, com o Kolabeat, e outros.
Jorge Lizardo, líder do grupo Delidel Touch, é actualmente um dos rostos mais emblemáticos do chamado reggae crioulo. E é talvez o músico que mais profundamente adoptou a filosofia rastafari como forma de vida. Lizardo teve o seu primeiro grupo de reggae, Roots Generation, entre 1983 e 1990, com Manecas Delgado (guitarra e voz) e Arlindo Delgado (bateria). A partir dos anos 1990, com a designação Delidel Touch, começam a tocar em festivais e clubes. Outro grupo de filhos de cabo-verdianos que por esta altura se dedica também ao estilo reggae é o Livity, de Roterdão. O desenvolvimento económico da Holanda e a profusão de estúdios de gravação, bem como a abertura ao mundo, permitem o aparecimento cada vez mais de músicos e de gravações.
A Holanda também viu surgir aquela que será umas das vozes femininas mais conhecidas do reggae crioulo. Nish Wadada (Eunice Vieira), oriunda da família Vieira de São Nicolau, começou por fazer coros em discos de Beto Dias, Suzana Lubrano, Mobass, Nelson Freitas e outros artistas cabo-verdianos. No ano 2000 passa a integrar o grupo Delidel Touch, onde fará também coro por alguns anos, participando em espectáculos e gravações. Em 2010, decide seguir uma carreira a solo, adoptando também o rastafarismo, e regressando às ilhas para viver em São Nicolau. É presença habitual nos mais importantes festivais de reggae europeus, representando o movimento rastafari cabo-verdiano. Tem também algumas colaborações com músicos internacionais.
Ainda no reggae feminino, destaca-se, em França, Monica’Kalamity & the Wizzards, cabo-verdiana de origem santiaguense. Tem igualmente um registo de diversas colaborações internacionais, com o costa-marfinense Tiken Jah Fakoli e a dupla secção rítmica mais famosa do reggae, Sly Dunbar e Robbie Shakespear.
Em Portugal, nesta nova geração, há o grupo Rubera Roots, num estilo militante, à semelhança do Delidel Touch. Fundada na Amadora, por músicos cabo-verdianos e filhos de cabo-verdianos, a banda segue o chamado Roots Reggae (como o próprio nome indica), estando também presente nos vários festivais de reggae europeus, com destaque para Espanha (Festival Rototon Sunsplash, considerado o melhor do mundo), Portugal e França.
Nos Estados Unidos são vários os músicos cabo-verdianos cujas carreiras passam igualmente pelo reggae. São os casos do baixista Jim Djob, um dos mais conhecidos, de Zecabelo, Zé Galvão e do grupo Afrika Rainbow, em Boston. Este último grupo, formado por filhos de cabo-verdianos, inspiram-se em Bob Marley e em Amílcar Cabral e tem dado espectáculos nos Estados Unidos e em Cabo Verde, tendo sido nomeado, em 2015, para os International Portuguese Music Awards.
Outra das bandas cabo-verdianas de reggae em terras norte-americanas é African Rebels, originalmente formada em Dacar, no Senegal, no final dos anos 1980. Os seus elementos, os irmãos Da Lomba (sobrinhos do baixista João Da Lomba, do Voz de Cabo Verde), nascidos em Dacar, instalaram-se em Rhode Island. São primos de elementos do Black Messengers – grupo da década de 1970, em Amesterdão, na Holanda –, os irmãos Jorge e António da Lomba.
Actualmente, os cabo-verdianos praticantes do reggae estão espalhados pelo mundo, da mesma forma em que este estilo se tornou universal. Mesmo que nem todos sigam a filosofia rastafari, optando apenas pelo lado musical e festivo. Entre outros nomes ligados a esta área podem-se citar, na Alemanha, Polmighty; Tenti Terra, em França; Road to Zion, no Luxemburgo; António Medina, em Portugal. Entre artistas que inserem o reggae no repertório, mas sem se dedicar exclusivamente a este género, há por exemplo Tchida Afrikanu, radicado no Brasil, e Jay Moreira, em Portugal.
Factores importantes para compreendermos a entrada do reggae no espaço musical cabo-verdiano são, num primeiro momento, a globalização e, por fim, as redes sociais. A primeira vai abrir as portas para todo um universo musical que cruza elementos identitários, históricos e culturais muito fortes. O acesso a este género musical e seus cultores é ilimitado, com viagens no tempo ao próprio passado jamaicano, às raízes do movimento rastafari. Os movimentos alternativos, que defendem uma economia justa e uma paz social, a liberdade do indivíduo, a liberdade criativa, em oposição a um mundo liberal-capitalista, estende a sua influência a todos os cantos do planeta.
Cabo Verde, pela sua própria história, abraça este ritmo e acolhe estes princípios, nas ilhas mas sobretudo na diáspora. Nos festivais de música que, entretanto, surgiram por todo o arquipélago, vários nomes do reggae internacional foram cabeças de cartaz, com grande sucesso. É o caso de Gregory Isaacs (talvez o primeiro rastaman da Jamaica que atuou ao vivo em Cabo Verde), presente no Mindelo e na Praia em 1994, trazido pela empresa de Kubilas, Super Som. Mas também de Kymani Marley (filho de Bob Marley), que gravou um clip na Cidade Velha, Alpha Blondy, Tiken Jah Fakoli, UB40, Richie CampbellRoots Syndicate, entre outros. O reggae passou, assim, a fazer parte de todos os cartazes de festivais de música das ilhas e a língua crioula encontrou, também, um género em que se adaptou, um novo espaço de expressão musical, de forma natural.
Personagens ligados ao reggae (lista não exaustiva)
Compositores e intérpretes: António Medina, Djim, Job, Jorge Lizardo, Nish Wadada, Polmighty, Tenti Terra.
Grupos: Afrika Rainbow, Delidel Touch, Domu Afrika, Kolabeat, Monica’Kalamity & the Wizzards, Ribera Roots, Road to Zion.
Artistas/grupos com reggaes no seu repertório, entre outros estilos: Américo Brito, Boy Gé Mendes, Edson Oliveira, Jay Moreira, Norberto Sanches, Gamal Monteiro e o grupo Obá, Tchida Afrikanu, Val Xalino Silva, Zecabelo, Tulipa Negra.
Ver e ouvir
* Texto produzido originalmente para Cabo Verde & a Música – Museu Virtual.