Os cabo-verdianos e o jazz 

Por GN em

Paul Gonsalves. Fonte: Internet

Por Gláucia Nogueira

Embora não seja o tipo de música mais difundida em Cabo Verde, o jazz sempre teve entusiastas entre os cabo-verdianos. E entre os músicos, embora não muito numerosos, teve ao longo do tempo vários praticantes.  

Como uma espécie de “chapéu” sob o qual muitas coisas diferentes se abrigam, o jazz é mais uma forma de estar na música do que um estilo musical, baseando-se, em linhas gerais, na liberdade criativa e na improvisação. Esta característica faz com que seja bastante heterogênea esta comunidade de músicos. Além disso, ao longo do tempo foram muitas as mudanças e os novos estilos e subgéneros que se formaram neste domínio.

Nos Estados Unidos, berço do jazz e onde uma comunidade cabo-verdiana já existia na região da Nova Inglaterra cerca de um século antes desse tipo de música aparecer, as atividades musicais no âmbito dessa comunidade estão bem documentadas. Grupos e personagens desde o início do século XX têm as suas histórias contadas aqui.

Os músicos cabo-verdianos – ou descendentes de cabo-verdianos – concentrados sobretudo em Massachusetts e Rhode Island viram o jazz nascer, foram impregnados por aqueles novos sons, aderiram à novidade, em alguns momentos possivelmente deixando de lado a música das suas origens. Em outros momentos interpretaram a música de Cabo Verde incorporando nas suas performances influências que recebiam do estilo de tocar que então desabrochava e contagiava o público nos Estados Unidos e depois pelo mundo fora. 

Horace Silver. Fonte: Internet

Alguns desses personagens tiveram trajetórias que extrapolaram os limites da comunidade cabo-verdiana e se tornaram célebres no contexto do jazz em geral. É o caso por exemplo de Horace Silver, um dos expoentes do bebop, de Paul Gonsalves, saxofonista que durante 25 anos foi o solista da banda de Duke Ellington e do trompetista Phill Barbosa, que terá, em finais da década de 1950, influenciado o então jovem pianista Chick Corea a abrir-se para os sons latinos. Paul Pena, Joe Livramento, Jimmy Lomba e George Azevedo são outros exemplos de personagens ligados ao jazz na comunidade cabo-verdiana na Nova Inglaterra. 

Frank Deniz. Fonte: Internet

Do outro lado do Atlântico, no País de Gales, na pequena comunidade de cabo-verdianos radicada em Cardiff, cuja origem remonta ao início do século XX,  alguns músicos também se dedicaram ao jazz. São nomes que não ficaram conhecidos em Cabo Verde, mas o registo da sua trajetória musical ficou na imprensa e na sua discografia. Hoje, graças à Internet, podemos facilmente acessar a sua obra e conhecer a sua história.  

É o caso dos irmãos Deniz, Frank, Laurie e Joe, nascidos no País de Gales e filhos de um marinheiro de São Vicente que emigrou para Cardiff em finais do século XIX. Os três irmãos iniciaram as suas carreiras como músicos profissionais na década de 1930 e estiveram em destaque no cenário musical britânico na era do swing, sendo personalidades negras de destaque naquele período.     

O jazz em Cabo Verde 

Se os músicos da diáspora cabo-verdiana estavam mais próximos dos principais centros onde se cultivava e se desenvolvia o jazz, isso não quer dizer que as ilhas não recebessem os ecos dessa dinâmica cultural. A denominação jazz band pode ser encontrada em vários registos na imprensa cabo-verdiana na década de 1930. Tal como nos primórdios do jazz nos Estados Unidos, eram bandas que atuavam em espaços de dança. 

Djosa Marques. Fonte: Kab Verd Band

Pelos anos 1960, Djosa Marques, pianista e baterista, membro do grupo Ritmos Cabo-Verdianos, é um nome que naquele momento, interpretando mornas e coladeiras com influências de jazz, mostrava a sua sintonia com esta linguagem. Tocava, blues e baladas, tendo sido um grande admirador do músico norte-americano Errol Garner, segundo o jornalista e baterista Carlos Gonçalves, em declarações a Cabo Verde & a Música – Museu Virtual, que  recorda ter atuado com Djosa Marques em 1971, em espectáculos no Eden Park e mais tarde, em 1983, na Galeria Nhô Djunga. 

Em fins da década de 1980, registe-se, na Praia, o surgimento do grupo Oásis, integrando Zequinha Magra (guitarra), Yah-Yass (baixo), Carlitos (sax), Gulba (trompete) e Duka (teclas) com uma proposta jazzística. Durou pouco tempo. Outro grupo que se pode inserir neste contexto é o Cape Verdean Jazz Band, também na Praia e também efémero, formado por Ney Bettencour (Ney di Belinha, na guitarra), Djinho Barbosa (teclas), Orlando Pantera (baixo), Raul Ribeiro (Houss, bateria), Casimiro Tavares (então regente da Banda Militar, no trombone e trompete) e Samuel no sax tenor.

Pode-se também identificar uma inclinação para o jazz em alguns músicos que nessa virada do milénio começavam a se destacar no cenário musical da Praia, casos de Kisó Oliveira e Angelo Andrade, membros do Arkora, que integrava também Houss e o brasileiro Ricardo de Deus. Kisó veio a participar, depois de se transferir para São Vicente, no Ku4rtet, com Khaly, Bruno e Ivan.

Também em São Vicente, refira-se o grupo Olinôs, liderado pelo alemão Swagato, que viveu os seus últimos anos no Mindelo, e por cuja formação passaram, entre outros, Kisó Oliveira, Hernani Almeida, Zé Paris, Micau Chantre, Bau e Humberto Ramos. Este último, no seu percurso académico, dedicou-se ao jazz em várias das escolas de música que frequentou em Portugal e mesmo residindo neste país, participou como compositor, produtor e pianista, além de responsabilizar-se pela gravação, mistura e mastering, do CD Sabura, que o Olinôs lançou em 2010.

Voginha, 1991. Foto: Marzio Marzot

Entre artistas atuando individualmente, há a destacar Voginha, com o seu até agora único disco, Felicidade (2002), em que mostra a sua ligação ao jazz, gravando inclusive o tema “So What”, um clássico do repertório de Miles Davis. Também de São Vicente e com trabalhos a solo refiram-se ainda estes dois guitarristas: Hernani Almeida e Vamar Martins. Hernani tem dois discos instrumentais a solo, Afronamin (2008) e Caalma (2010). Vamar, depois de formar em França, o Mix Quartet, grupo que durante algum tempo só interpretou composições de Horace Silver, veio a gravar já depois de ter voltado a Cabo Verde o álbum Inkrustod, tocando música cabo-verdiana com um pé no jazz. 

Outro guitarrista que enveredou pelo jazz é Carlos Mendes (Carlos Modesto), da Praia, residente no Porto, Portugal, onde é professor universitário em disciplinas relacionadas com o jazz e participa num quarteto, com o qual gravou o álbum Estórias.

A parceria musical de Amândio Cabral e o pianista norte-americano Larry Dunlap é outro item desta panorâmica sobre os cabo-verdianos e o jazz. Dunlap gravou vários discos especificamente com composições de Cabral e acompanhou Gabriela Mendes na gravação de um disco com interpretações jazzy de temas deste compositor.

Carmen Souza, Mindel Summer Jazz, 2018. Fonte: Facebook

Do início dos anos 2000 em diante, um nome destaca-se pela linguagem jazzística: Carmen Sousa. Já ao começar a sua carreira ela recebia da crítica europeia comparações com divas do jazz, pelo estilo do seu canto. Refira-se que Carmen Souza compôs uma letra para “Song to my father”, de Horace Silver, a contar a história do seu próprio pai, e o seu álbum The Silver Messengers é um tributo a este músico norte-americano de origem cabo-verdiana. Criou também letra para “My favourites things”de John Coltrane. Noutra vertente, gravou num sotaque jazzy clássicos cabo-verdianos como “Seis one na Tarrafal” e “Sodade”. 

É de referir ainda a cantora Xiomara Barbosa, residente nos Estados Unidos, que durante algum tempo atuou neste país com músicos de jazz da Berklee College of Music, em Boston, e Candida Rose, nascida numa família cabo-verdiana em New Bedford, que entre outras atividades musicais tem um grupo denominado CaboJazz Ensemble, em que mescla a tradição musical cabo-verdiana ao jazz, evidenciando as suas vivências musicais relacionadas aos dois países do seu pertencimento.   

Os festivais de jazz  

Carlos Martins, saxofonista português, Martin Schaefer com Augusto de Pina. Fesquintal de Jazz, 2002. Foto: Olav Aalberg

Fesquintal de Jazz – 2002. sob a coordenação de Mário Lúcio e Teté Alhinho, na época membros do Simentera, este evento surge inspirado no ecletismo do jazz, reunindo um leque de artistas que inclui desde representantes da música tradicional cabo-verdiana, como os violinistas Nho Djonzinho ALves e Nho Raul de Pina, ou nomes do funaná de raiz, como Sema Lopi e Codé di Dona, a jovens talentos que despontavam naquele momento, como o grupo Djingo e a cantora Paulinha. Youssou N’Dour foi o destaque internacional. O violinista alemão Martin Schaefer e o saxofonista português Carlos Martins foram outros personagens deste evento.    

Kisó Oliveira no Festijazz, Praia, 2003. Foto: Gláucia Nogueira

Festijazz – 2003. No ano seguinte, um grupo de cidadãos na cidade da Praia quis que o festival continuasse, mas os organizadores do Fesquintal de Jazz se desinteressaram, realizando-se então um evento com outro nome, que como o anterior teve uma única edição. Este, porém, desdobrou-se entre a Praia e o Mindelo. O Festijazz homenageou Luís Morais, falecido meses antes, com um espetáculo que reuniu vários músicos da área dos sopros. O festival foi promovido pelo Promex, na época dirigido por Georgina de Melo. 

Tavares Brothers no Kriol Jazz Festival, em 2012. Foto: Gláucia Nogueira

Kriol Jazz Festival (KJF) – desde 2009. Surgiu a partir de uma iniciativa de Djô da Silva, proprietário da Lusafrica e da Harmonia, com a parceria da Câmara Municipal da Praia e da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV). O Kriol Jazz Festival realiza-se anualmente, no mês de abril, na chamada Pracinha da Escola Grande (Praça Luís de Camões oficialmente). Nas primeiras edições do evento era aí que ficava a reitoria da universidade pública cabo-verdiana. O KJF já foi apontado por revistas da especialidade entre os melhores festivais de jazz do mundo. Sempre pautando-se pela ideia de jazz como uma prática de trocas e misturas, em suma, um exemplo de crioulidade. Saiba mais: www.krioljazzfestival.com/ 

Theo Pascal. Mindel Summer Jazz, 2017 Fonte: Facebook

Mindel Summer Jazz – desde 2012. O embrião deste festival é o Jazzy Bird Bar-Pub, local onde sempre foram habituais noites de jazz. A JBird Productions vem daí, e começou a realizar o evento em 2012. Ao longo das suas edições, vem prestando tributo a músicos ligados à música instrumental, como Teck Duarte, Luís Morais e Horace Silver, mas também personagens como B.Léza, Chico Serra e Biús já foram homenageados. Ocupou inicialmente a Torre de Belém, na cidade do Mindelo, mas com o passar dos anos “transbordou” para outros espaços da cidade, como a praça entre o Liceu Bedje (antigo Liceu Gil Eanes) e o palácio do governo, a Escola Municipal de Música, o restaurante Casa da Morna, o pontão da marina e o Centro Cultural do Mindelo. O festival acontece sempre no mês de agosto. Para saber mais, clique aqui.

Esta é uma

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