Músicas de fim de ano/São Silvestre
Por Gláucia Nogueira
Com semelhanças e diferenças, a noite de São Silvestre é festejada com muita música nas ilhas de Cabo Verde. Vem de longe a prática de desejar “boas festas” de casa em casa, na noite da passagem do ano. Seja em troca de algum dinheiro, seja por simples cortesia. Ficam aqui alguns relatos que mostram esta tradição, em determinados lugares chamada “Boas Festas”, em outros “Racordai”, que é também o nome do instrumento de percussão característico desses momentos.
Noites de São Silvestre
Em dezembro de 1951, o poeta e compositor Sérgio Frusoni publicou no jornal Notícias de Cabo Verde um texto em que relata os festejos da noite de São Silvestre de um tempo já antigo no momento em que escreve. Uma época em que a pequena cidade do Mindelo, segundo o autor, “não sofria ainda os ultrajes da vida moderna” e festejava a noite de São Silvestre “seguindo os bons ensinamentos do passado, com seus velhos costumes…”.
Tendo em conta que Sérgio Frusoni nasceu em 1901, é aceitável pensar que as recordações que são o substrato da crónica intitulada “Noite de São Silvestre” são da primeira década do século XX. Nascido numa família italiana radicada no Mindelo, o ponto de vista do narrador é o daqueles que estão nas casas – normalmente as mais abastadas – que recebem a visita dos cantores que desejam boas festas e levam algo em troca: os restos da ceia e algum dinheiro.
“Grupos de cantores, homens, mulheres e crianças, iam de casa em casa desejar as Boas Festas.
Era a hora da ceia: primeiro ritual da festa.
As ruas desertas, as casas e as lojas fechadas, as janelas iluminadas a cidade comia, num recolhimento solene. Fora soprava o vento.
Transparecia das janelas uma luz branda: debaixo do candeeiro a petróleo, em volta da mesa posta, cada família gozava por sentir.se unida, concorde, com a alma aberta à bondade, à compreensão, ao perdão das ofensa: os ausentes tinham voltado por breve tempo; tinham vindo à casa dos velhos, também os filhos com as mulheres e os pequenos: os velhos volviam os olhos pacíficos, satisfeitos, sobre a pequenada recolhida: três gerações atestavam a santidade da festa que não mudava.
E na noite cristã, expandia-se o canto tão caro a todos: ‘Acordai aquele que está no sono, que lá vem uma tropa, e é Real!’
Os miúdos assomavam à janela, com uma espécie de temor delicioso, imaginando fábulas e lendas.
À volta da mesa, conservavam-se todos um pouco graves, um pouco comovidos, na moleza da digestão, na atmosfera acolhedora do quarto bem abrigado. E o canto lá fora retomava. As vozes pareciam surgir do profundo, largas, lentas, orantes.
Eram pobres, mal agasalhados. Tinham fome, tinham sede: traziam votos de bem aventurança, pediam em troca um pouco de agasalho, o sorriso da amizade, a mão da fraternidade, em nome de um Deus que tinha redimido sobre a Cruz os homens de boa vontade.
As vozes gemiam ao vento: ‘Acordai aquele que está no sono, que lá vem uma tropa, e é Real!’
Outras vozes ao longe, tremiam de melancolia, repetindo o mesmo estribilho.
Um grupo batia à porta pedindo a sua ‘parte da festa’.
O mais velho da família volvia em redor os olhos honestos e tardios, consentindo o rito caridoso.
Abria-se a porta, os cantores entravam. Mandava-se vir da cozinha os restos da ceia. Bebia-se de pé o copo da fraternidade.
Por fim os cantores saíam agradecendo, prometendo voltar no ano seguinte.”
Sérgio Frusoni, em “Noite de São Silvestre”, Notícias de Cabo Verde, dezembro de 1951.
“Em primeiro lugar, planeávamos o nosso roteiro pela cidade, ou seja, quais seriam as principais casas aonde iríamos tocar o racordai, para dar as Boas Festas, pois aquelas que pertenciam à gente rica davam-nos sempre uma ‘fistinha’ mais rendida, o que não acontecia com as pessoas menos abastadas.
Escolhíamos então, de entre todos, qual seria nomeado ‘Jorge’, portanto, o homem que recebia e guardava o dinheirinho das Boas Festas.
Assim, tudo planeado e combinado, mãos à obra para a confecção dos nossos pandeiros, o que consistia numa pequena tábua retangular de uns 30 centímetros de comprimento, por 3 de largura, adelgaçada na ponta, fazendo uma pegada. Aplicávamos sobre a tabuinha uma fila de 5 a 6 pregos, assentes em cada um, 6 tampinhas de limonada, devidamente espalmadas e depois de pronto, ao sacudi-lo vigorosamente, produzia um som metálico e estava concluído o pandeiro ou racordai.
Então, eram os ensaios diários feitos à tardinha, em casa de um dos componentes do grupo, até chegar o almejado dia de São Silvestre. (…) Às 7 horas da noite, partíamos da Fonte Doutor, que era rua onde morávamos, e a primeira casa a irmos dar as Boas Festas era na do saudoso Dr. Adriano Duarte Silva, que nos “benzia” logo a mão, com uma “cosinha boa”. A seguir íamos a outras casas que também nos podiam dar umas festinhas regulares e então, passávamos a tocar em todas as casas da cidade (…)
Havia bailes no Salão do Liceu, em várias casas particulares, nos clubes e nos grupos, na sala de João Toletino, Nha José d’Canda, na do Jacó, na Nha Camila na rua d’ Coco, na Dublinha no Lombo, na Nho Pedro Antónha e Nha Dadô na Fonte Doutor e tantas outras mais na cidade. Havia também o grande baile dos ingleses do Telégrafo, em que todos se apresentavam de fato smoking e as senhoras de vestido comprido (…) Naqueles tempos, era o melhor baile que se fazia em S. Vicente, podia-se mesmo dizer que era uma festa de gala, em que, além de ingleses das companhias carvoeiras, eram apenas convidadas as entidades mais gradas da ilha.”
Manuel Nascimento Ramos (“Nena”), em “Recordando as festas de São Silvestre d’ outrora”, Terra Nova, feveiro de 1986.
Em outros tempos, prossegue o autor, havia também grandes bailes na Câmara Municipal, também estes só para os VIP da época, e no espaçoso salão do Eden Park. Segundo o relato de Nena, ao longo da noite a cantoria continuava: “Ô recordai aquele que está no sono, porque lá vem a tropa sã real”. Às vezes, recorda, “apareciam autênticos conjuntos musicais, com clarinete, saxofone, trompete, instrumentos de corda, tamborim e chocalho, etc, tocando alto de porta em porta e atraindo muitíssima gente no trajeto pela cidade”.
O relato menciona também as mornas que então eram tocadas, e refere nomes dos músicos que faziam parte desses grupos, como Nho Xalino, Mochim d’ Monte, Frank Cruz, Nho Simão, Querena, Djut, Lela d’ Lorença, entre outros.
João Lopes Filho, por sua vez, escrevendo sobre as festividades de fim e início de ano em São Nicolau, refere que é a garotada que realmente imprime vida a estes dias festivos (Natal, S. Silvestre, Ano Bom e Reis). “O canto do racordai é feito por um solista, e os restantes elementos acompanham em coro, marcando o compasso, uns batendo no chão pequenos cajados de que são portadores, outros com um instrumento rudimentar feito de um pedaço de madeira onde estão fixas , com pregos compridos, várias cápsulas de garrafas perfuradas no centro, que produzem um som que lembra o chocalho”, escreve o antropólogo em O Arquipélago (08.03.1973).
Na mesma linha vai o depoimento de Djick (Henrique Teixeira Oliveira) sobre a ilha Brava, onde, refere, “as crianças é que entoavam as cantigas, que tinham o nome de Canta Res, que significa Canto aos reis, aos reis magos”, porque nesta ilha festejava-se com grande pompa não só a noite da passagem do ano, como também havia a festa dos Reis, na noite de 5 para 6 de janeiro. E após o canto, as crianças recebiam bolos, bolachas. Apenas comida. Não se dava dinheiro a crianças”, recorda.
Relativamente à ilha da Boa Vista, uma recolha do cronista Júlio Rendall traz o personagem Nhô Morice, que com seu grupo de moças e rapazes percorria as ruas de Sal-Rei em cantoria, na noite do dia 31 de dezembro para 1 de janeiro. Segundo esta fonte, para essa performance, os ensaios eram habitualmente realizados ao longo do mês de novembro e dezembro. Fica aqui a letra da cantiga “Acordai”, versão boavistense do “São Silvestre”.
A atualidade da cantiga de São Silvestre e as suas diferentes versões
Das mais tradicionais às mais modernas, diferentes versões da cantiga da noite de São Silvestre não faltam para animar a época festiva.
Em 1967, Luís Morais fez um arranjo para esta composição e a sua gravação, acompanhado pelo grupo Voz de Cabo Verde, tornou-se um clássico, ano após ano ouvido constantemente em Cabo Verde, durante a época festiva. O LP Boas Festas, que contém a gravação, foi classificado em 2015 pelo governo cabo-verdiano como patrimônio histórico e cultural nacional.
Diversas outras versões, com diferentes letras e enveredando por estilos musicais de contextos bem distantes daquele em que a canção era tradicionalmente cantada, foram surgindo ao longo do tempo, e encontram-se em discos ou na forma de vídeos publicados online, como se pode conferir abaixo.
São Silvestre
Nh’irmon Manel tem um bode motche capode
El ta tel marrode na ladirinha de mon pa trás
Já’m pidi Deus pa da’l um morte dsembraçod
pa nô pode cmê’l c’mandioca fresca d’sinagoga
Eu venho aqui lhe dar as Boas Festas
aqui em casa do senhor e da senhora
eu quero saber se a senhora é mulher honrada
pra correr mão lá na chave do seu baú
para tirar uma oferta grandiosa
pra repartir pra toda a nossa sociedade
Oh dáca, oh dáca, se bô ti ta dáca
porque Jorge é um homem de má consciência
ondê qu’el bá el ta trá más el ta tchá menos
Alô assim já somá três cavalers
eu quero saber que cavalers serão aqueles
um é Gaspar, ot Belchior ot é Baltazar
ês ti ta bem pa regoce d’Virgem Maria
Letra fornecida por Yah-Yass
Transposta para a literatura, a cantiga de fim de ano aparece numa obra de Pedro Cardoso, em 1942:
O santo – A noite de São Silvestre é assinalada mundialmente sobretudo na área desportiva, mas talvez poucos saibam quem foi o santo que é homenageado nesse dia pelo calendário católico. Natural de Roma, nascido no ano 285, São Silvestre foi o papa Silvestre I. Durante o seu papado, o imperador Constantino concedeu liberdade de culto aos cristãos. Foi um dos primeiros santos canonizados sem ter sofrido o martírio. Morreu a 31 de dezembro de 335.
Ver e ouvir
Colaboraram para a produção desta página: Djick Oliveira, João Freire de Oliveira, Vuca Pinheiro, Yah-Yass.