O papel e a representação da mulher na música em Cabo Verde
Texto adaptado de palestra com o mesmo título proferida na programação paralela ao IV Congresso Brasileiro de Percussão (Instituto das Artes da Unesp, São Paulo, dezembro de 2024)

Gláucia Nogueira
À parte o universo do batuku, onde elas sempre foram as protagonistas, o espaço reservado às mulheres na música em Cabo Verde é, ou foi ao longo de muitos anos, no máximo o de musa inspiradora ou, no caso de um papel mais ativo, o de cantora. Este padrão só muito recentemente vem sofrendo mudanças.
Tradicionalmente, na maior parte dos casos, mesmo em famílias em que muitas pessoas tocavam algum instrumento, as mulheres em geral não aprendiam a tocar nenhum. É o caso por exemplo dos grupos Pai e Filhos Alves ou Pai e Filhos Andrade, em que todos os rapazes eram obrigados a aprender a tocar (ver o que dizem sobre isto Kim Alves e Tcheka), porque a atuação em bailes, festas e até em funerais era uma forma de reforçar o orçamento familiar. Mesmo nestes grupos as filhas estão ausentes.
Embora esses dois grupos sejam exemplo de uma prática musical que ocorre no espaço doméstico, sempre houve em Cabo Verde uma visão do músico como um boémio, e a atividade musical não era encarada como algo sério, de respeito, de prestígio. Vários músicos relatam em entrevista que foram reprimidos na sua inclinação para a música e no desejo de aprender um instrumento (ver de o que dizem a este respeito Humbertona e Lela Violão). Então, se não havia incentivo sequer para os rapazes, quanto mais para as meninas…
Assim, não é de estranhar que fossem raros os exemplos de mulheres tocando violão e compondo. Eventualmente uma ou outra poderia tocar (como, por exemplo, a mãe de Ano Nobo), mas no ambiente familiar.
Relativamente ao piano, um instrumento da elite, vamos encontrar algumas professoras, que lecionavam música neste instrumento, além de ensinar costura, francês e outras disciplinas consideradas adequadas e úteis ao género feminino em tempos passados. Anúncios na imprensa cabo-verdiana no século XIX mostram essas professoras, mas mulheres numa performance em público já seria algo bem mais raro.

Rara, única, foi a pianista e compositora Tututa (1919-2014). Ela teve um professor, não foi autodidata, como a maior parte das pessoas que tocam algum instrumento em Cabo Verde. Foi compositora, o que é pouco frequente até hoje entre as mulheres. E tocou em público, contrariando todos os padrões em vigor em meados do século XX. Mas é verdade que só tocou em público, e por dinheiro, depois da morte do pai, em 1936, pois ele, o compositor Anton Tchitche, não admitia que ela tocasse fora do ambiente doméstico. Tututa viveu 95 anos, e até o fim da sua vida tocava, com um prazer e uma entrega ao instrumento que era admirável. Dizia tocar “para ouvir palmas”.

Maria Barba é outro exemplo de personagem feminina que se destacou como o que em Cabo Verde se costuma designar não como cantora, mas como “cantadeira”. Ela cantava em bailes, acompanhada por grupo acústico, que era o que havia na época, e improvisava pelo menos uma parte das letras que cantava. É uma personagem associada à história da Morna, e na composição – cujo título é o seu nome – que a colocou definitivamente na história da música de Cabo Verde, Maria Barba faz um dueto com um participante do baile.

Ana Procópio é outra personagem feminina muito na contracorrente do que seria esperado nas relações de género em Cabo Verde na época em que ela viveu e sobretudo na época em que terá cantado – a primeira metade do século XX.
Foi uma das chamadas “cantadeiras”, como Maria Barba. Vivia na ilha do Fogo, onde havia uma tradição de cantigas sarcásticas, humoradas, às vezes picantes, outras vezes alfinetando determinadas pessoas, e era esse tipo de cantigas que ela criava e cantava. O seu neto, o comandante Pedro Pires, antigo presidente da República de Cabo Verde, revelou-me em entrevista sobre a avó que o seu pai, filho de Ana Procópio, não gostava que ela cantasse em público. Por aí pode-se ver que ela era bem rebelde.
Figuras como Nha Nácia Gomi, Nha Bibinha Cabral, Nha Gida Mendi e Nha Mita Pereira foram por sua vez célebres como cantadeiras de finason, área em que as mulheres sempre foram o centro das atenções. Visite a página sobre Batuku e Finason, e conheça as suas histórias.
Por sua vez, as coladeiras das festas de bandeira, na ilha do Fogo, são outro grupo feminino que se destaca numa atividade relacionada com a música. Esta página sobre personagens da festa de bandeira na ilha do Fogo mostra os perfis de várias delas. Uma das mais célebres foi Nha Idalina. Siga o link para conhecer a sua página.

Há ainda a referir mulheres que acompanharam seus companheiros/maridos, tocadores de gaita no âmbito do Funaná, tocando ferrinho, mesmo sendo este género musical um universo marcadamente masculino.
Florzinha, mulher de Caetaninho, é uma delas. Contudo, o que é revelador, na capa do disco que ambos gravaram o nome dela sequer aparece. O título do CD é: Caetaninho e Esposa – Folklor Tradicional de Cabo Verde. Em tempos recentes, Nila Freire, de uma família de tocadores de gaita, é a única mulher a fazer uma carreira musical com base neste instrumento.
Nos tempos atuais, a presença feminina nas atividades musicais vai mudando pouco a pouco. Ainda que muitas raparigas frequentem escolas de música e que algumas já figurem nas bandas municipais, Nelly Cruz ainda é uma figura rara com o seu baixo a acompanhar artistas em palco, papel que ainda estamos habituados a ver desempenhado por homens.

Teté Alhinho foi uma pioneira, nos anos 1980, a aparecer como compositora dos temas que gravou nos seus discos, exemplo que a filha, Sara Alhinho, vem seguindo desde que iniciou a sua carreira musical.
Em tempos mais recuados, refira-se Fausta d’ Dada, uma compositora de quem se conhece uma única morna. Teria possivelmente outras composições conhecidas, não fosse ser tão contracorrente ser compositora no seu tempo.
Mayra Andrade, Lura, Elida Almeida e Candida Rose são alguns nomes que surgem de finais da década de 1990 em diante, como compositoras, segundo informações das capas dos seus discos, na maior parte das vezes em parceria com os produtores ou músicos que fazem a direção musical.
Numa época de transformações rápidas como a que vivemos, podemos pensar que o acesso à educação musical – hoje mais acessível que no passado – poderá levar a mudanças na posição da mulher nas práticas musicais, seja na informalidade ou nas performances de palco. A escola Pentagrama, na cidade da Praia, desde que começou a funcionar, em 1990, tem tido uma maioria esmagadora de alunas, segundo o seu fundador, Tó Tavares. Em 2025, dos cerca de 115 alunos inscritos, 95% são meninas, revelou o professor a Cabo Verde & a Música – Museu Virtual. Por lá já passaram, por exemplo, Mayra Andrade e Lúcia Cardoso.


A exceção que confirma a regra

No filme Alma ta Fika (1989), do realizador português João Sodré, a sequência que mostra um desfile de Tabanka mostra esta tocadora de sinboa. Se o instrumento já chegou a ter o seu desaparecimento anunciado, por ser tão pouco utilizado, ver uma mulher a tocá-lo é um momento ainda mais raro.