Funaná
“A palavra funaná foi usada
durante muito tempo
com sentido pejorativo e seletivo
para os do tóki i baju di gaita”
Horácio Santos (Lalacho), “A dança no tempo e no espaço”,
Voz di Povo, 09.03.1985
O funaná, música contagiante sempre presente nas pistas de dança cabo-verdianas, é um género musical com uma história rica em transformações – seja no aspeto musical, seja na maneira como foi e é encarado na sociedade cabo-verdiana. No período colonial, estigmatizado e desvalorizado, era praticamente desconhecido da população urbana, mesmo na ilha de Santiago, de onde é originário. Depois da independência, “explodiu” num sucesso que gerou uma extensa discografia baseada no seu ritmo irresistível.
Na sua origem, era tocado com a gaita – que é como os cabo-verdianos denominam o acordeão diatónico – e o ferro (ou ferrinho), uma barra metálica com que se marca o ritmo ao ser percutida e friccionada com uma faca ou outro objecto metálico. Antigamente, era a lâmina de uma enxada. Nos antigos badju gaita, vários ritmos eram interpretados, como valsas, sambas e mazurcas – de onde se conclui que funaná é uma maneira de interpretar diferentes estilos musicais. Havia também um ritmo denominado “caminho-de-ferro” e será este que, mais tarde, passa a ser chamado “funaná”.
Depois, o som do funaná foi eletrificado e mais tarde surgiu numa vertente eletrónica. Na atualidade, todos esses recursos convivem. A dança também mudou, e de um padrão em que os pares em geral dançam bem juntos, no andamento acelerado dos tempos recentes, ainda que se mantenha a dança de par, é frequente ver pessoas a dançaram sozinhas.
Diz a lenda que Funaná era um homem e sua mulher; ele era Funa, e tocava gaita, ela era Naná, e tocava ferrinho. Esse relato faz parte da tradição oral para explicar o nascimento do funaná e o nome. Outras versões apontam para a palavra fungagá, com o significado de “filarmónica reles”. Contudo, há quem afirme que a utilização da palavra funaná é recente (a partir da década de 1960, aproximadamente), sendo que os mais antigos apenas se recordam da expressão badju gaita (baile animado por um tocador de gaita). A expressão fuc-fuc aparece num texto que refere que, em Santiago, “continua a tradição do batuque, e, no interior da ilha, os bailes-de-gaita-e-ferrinhos (fuc-fuc)…” (O Arquipélago, 24.12.1970). Há ainda a hipótese de o termo funaná ser simplesmente uma onomatopeia, imitando o som da gaita.
O nome
Se é recente a utilização corrente do termo funaná para designar esse tipo de música e dança, a palavra existia, contudo, já no início do século XX, e aparece no jornal O Independente (12.02.1912) num texto sobre o Carnaval, em tom depreciativo: “No teatro, a mesma insipidez, a mesma ausência de graça, a mesma sordidez e algum funaná a mais (…) Por Belzebut! – dai-nos alegria e livrai-nos do funaná!…”.
História
A possível referência mais antiga ao funaná situa-o no ano de 1902, como sendo aquele em que se ouviu pela primeira vez o som da gaita tocada por cabo-verdianos. Num artigo no jornal Voz di Povo (14.08.1982), Antero Veiga, baseado no testemunho do seu avô (nascido no interior de Santiago em 1883), aponta hipóteses sobre as origens do funaná. Por volta de 1912, segundo o texto, realizavam-se os primeiros badju di gaita na área de Achada de Bentrero e arredores (locais correspondentes a partes dos atuais municípios da Praia e de São Domingos). Trata-se de uma vasta área de pastagens, para onde os proprietários de bovinos e caprinos mandavam o seu gado, gerando, assim, trabalho na pastorícia para os habitantes dessa região. Estes “tinham uma situação financeira que permitia a compra de gaitas de fole que se vendiam nas lojas da Praia”, segundo Veiga. A partir daí, a mobilidade dos pastores, própria da sua atividade, terá levado o som da gaita para outros pontos da ilha.
Outra hipótese sobre o aparecimento do funaná refere que a Igreja Católica introduziu o acordeão em Cabo Verde para uso nas suas paróquias, por ser mais portátil e de baixo custo, se comparado ao órgão, instrumento habitualmente presente nas igrejas. Da sua utilização no interior dos templos para o exterior, em práticas profanas, teria sido um passo. Contudo, contrariando esta hipótese, o artigo no Voz di Povo recorda que a situação da época era de repressão por parte dos religiosos (o que se verificava também relativamente ao batuku): “Se um tocador estivesse a tocar e visse um padre, escondia-se porque era considerado pecado”.
Só depois da independência de Cabo Verde (1975), quando se vivia um período de valorização das tradições populares, o funaná passou a ser assumido de forma plena como género musical nacional, sobretudo a partir do surgimento do grupo Bulimundo, criado em 1978, que com instrumentos elétricos deu ao funaná uma sonoridade urbana e contemporânea, embora algumas iniciativas pioneiras o tenham antecedido na gravação de funanás, como os grupos Broda e Os Apolos ou o trabalho de Norberto Tavares com o Black Power.
Durante muito tempo, o funaná ficou restrito aos ambientes rurais da ilha de Santiago e praticamente desconhecido da população dos principais centros urbanos, ainda que, aos domingos, quando os camponeses se dirigiam à cidade da Praia para vender os seus produtos no mercado municipal, levassem a gaita e o ferrinho. Mas nessa época quem reinava no gosto do público urbano era a morna. Nas outras ilhas, considerando-se as dificuldades de transportes no território insular que é Cabo Verde, terá ficado desconhecido até, aproximadamente, a década de 1970, salvo alguma rara exceção. Mesmo no interior de Santiago, na cidade de Assomada por exemplo, Kaká Barbosa, referindo-se à década de 1960, afirmava que a morna e sambas eram as músicas em voga e que eventualmente se ouvia uma koladera, mas “nunca o funaná” (Cabo Verde & a Música – Dicionário de Personagens).
“Vai aparecer lugar para novas criações (música e letra) do público camponês ou não (…) não teremos mais uma música funaná para camponeses e morna ou coladeira para os outros”.
Katchás, ao jornal Voz di Povo, 23.04.1981
Bulimundo adapta o ritmo do ferrinho à bateria, e para a melodia utiliza os teclados, guitarra ou sopros no lugar da gaita. Katchás (Carlos Alberto Martins, 1951-1988), guitarrista e compositor, foi o fundador e líder do grupo, nesses primeiros tempos. Foi assim que o grupo retirou o funaná dos limites do regionalismo, lançando-o para o público das outras ilhas e da diáspora. Assim, o funaná passa a ser fruído por pessoas de estratos sociais mais elevados que os camponeses do seu meio original. Passa a ser encarado como um género musical cabo-verdiano no mesmo patamar em que até então só eram admitidos a morna e a coladeira.
Além de temas de Katchás e de outros membros do Bulimundo, aparecem nos LP do grupo composições do repertório dos músicos que produziam o funaná tradicional, rural, casos de Codé di Dona (Gregório Vaz, 1940-2010) e Sema Lopi (Simão Tavares Lopes, 1940-2013). Estes só irão gravar os seus próprios álbuns na década de 1990, depois do sucesso do grupo Ferro Gaita, que inicia uma nova fase na história do funaná, em que a gaita, que tinha sido posta de parte, surge como instrumento solista acompanhada do velho ferrinho, mas com reforço do baixo, guitarra e bateria. Um novo filão é então descoberto.
Atualidade
Em meados da década de 1990 outra tendência começou a se delinear, firmando-se ao longo da década de 2000: a aceleração do andamento, que já começara com o grupo Bulimundo, acentuou-se na fase Ferro Gaita e continuou a se intensificar. Outras características dessa fase são a mistura, nos repertórios, com outras músicas dançantes, em particular o zouk e o soukouss, e a tendência para a produção musical a partir de tecnologia digital – teclados e bateria eletrônica. A partir da segunda metade da década de 2010, surge a expressão kutxi pó, que designa um funaná muito rápido, que une a gaita aos recursos eletrónicos.
Personagens ligados ao funaná
Tradicional: Codé di Dona, Sema Lopi, Caetaninho, Tchota Suari, Bitori Nha Bibinha
Funaná elétrico: Norberto Tavares, Zeca di Nha Reinalda, Bulimundo, Finason, Katchás
Anos 1990: Ferro Gaita, Petural, Chando Graciosa
Ano 2000 em diante: Zé Espanhol, Silvino Branca, Fidjos Codé di Dona
Paa saber mais
- Batuko and Funana: Musical Traditions of Santiago, Republic of Cape Verde, tese de doutoramento de Susan Hurley-Glowa, 1997.
- “Funana with a Drum Machine Beat?: Cape Verdean Identity in a Globalized World” – Artigo de Susan Hurley-Glowa no International Journal of Africana Studies, 2006.
- Música, poder e diáspora: uma etnografia e história entre Santiago, Cabo Verde e Portugal, tese de doutoramento de Rui Cidra, 2011.
- “Do ‘badju di gaita’ ao funaná-soukouss, da música rural ao pop: o percurso do funaná ao longo de um século”, artigo de Gláucia Nogueira e Jo di Bango na Revista Brasileira de Estudos da Canção (REBEC).