Festas de bandeira na Ilha do Fogo – São João

Por GN em

Por Gláucia Nogueira

As festas de bandeira são uma forte tradição na ilha do Fogo. “As festas dos santos acompanham o povoamento da ilha e a emergência de famílias de proprietários que, ao dominar uma certa zona, ostentavam o seu poderio com o santo da sua devoção”, refere Fausto do Rosário (A Semana, 23.06.2006).

São João, a 24 de Junho, é uma das festas de maior impacto. “É sem dúvida o contraponto à Bandeira de S. Filipe”, a mais mediática e que coincide com o dia do município. Para Rosário, São Filipe é a bandeira nobre, do sobrado, enquanto São João é a bandeira do povo, da gente simples, “mas que faz vibrar toda a cidade, e ultrapassa a cidade, é de toda a ilha do Fogo”.

Tambores na festa de bandeira. Foto cedida por Fausto do Rosário

Já no seu texto publicado na revista Claridade em 1958, intitulado “Bandeira: o senhor e o escravo divertem-se”, Félix Monteiro apontava esse facto, referindo que, no passado, havia uma seleção rigorosa para se poder ser o festeiro da bandeira de São Filipe: só os brancos tinham acesso a esse privilégio. Mas isso, segundo o autor, não valia para as bandeiras de junho – de São João e São Pedro – , que já naquela época nada tinham de aristocrático.

Santo de enorme devoção popular em Portugal e no Brasil, os seus festejos apresentam em Cabo Verde os mesmos componentes que naqueles países: as sortes que são deitadas, a fogueira, as cinzas que se guardam para atirar nos cantos da casa em tempo de menos sorte ou quando há um temporal. A propósito da fogueira (lumnara), recorda Rosário, existe a prática, proveniente da influência medieval, de se saltar por cima dela, recitando as palavras: “San Jon San Jon, sarna na lume, saúde na korpo”, pedindo assim ao santo que afaste tudo o que é mau.

A festa começa entre sete a cinco dias antes do dia grande, o dia do santo, com o toque de tambor convocando os cavaleiros para o início das festividades. Este toque chama-se “brial dos cavaleiros”, explica Fausto do Rosário.

“Quando faltam três dias para o dia do santo, ou seja, a antevéspera, prepara-se o ritual do mastro, que é vestido e recoberto de plantas e flores, dançado durante toda a noite pelos canizade e depois fixado, nas primeiras horas da manhã da véspera”, prossegue.    

Cada santo, cada bandeira, tem um percurso próprio para o mastro e um ritual próprio para a fixação, e também um lugar próprio, esclarece esta fonte. “Depois, o mastro é retirado no útimo domingo de julho, ou então quando caírem as primeiras chuvas, caso isso aconteça antes do fim de julho”, prossegue, recordando que o levantamento do mastro, é feito com coladeiras e tamboreiros com um ritmo próprio.  

Canizade

Mastro próximo à igreja matriz em São Filipe. Bandeira de São João, 2007. Foto: Gláucia Nogueira

No período das festas de São Pedro, São João e Santo António, um grupo de mascarados percorre as ruas da cidade, dançando e fazendo acrobacias. São os canizade. “Corresponde à tradição do diabo à solta que existe no Norte de Portugal, em que os figurantes, cobertos de fitas, têm liberdade de fazer o que bem entenderem”, refere José Maria Semedo (A Semana, 23.06.2006). “É uma espécie de liberdade carnavalesca, que dura das nove da noite às quatro da manhã, três dias antes da festa. Depois desaparecem. Antes de sair, bebem grogue na casa do festeiro, fazem festa, depois saem pelas ruas da cidade. O percurso leva-os às casas dos membros afiliados nas bandeiras.”

Para algumas pessoas, segundo Semedo, seguir o percurso dos canizade pela cidade é uma forma de pagar promessa.

Por sua vez Fausto do Rosário, salienta que os canizade “não são simples mascarados… São uma entidade complexa e fascinante, que ultrapassa de longe o aspecto visual. Não é apenas um mascarado que se diverte na véspera do dia do santo. Eles têm um estatuto e um papel importante no ritual da bandeira; possuem uma hierarquia e estão-lhe cometidas tarefas importantes no contexto da festividade”. Os canizade, prossegue, têm o papel de defender a bandeira e para o fazer às vezes chegam ao ponto de roubar a bandeira.

Os canizade e a presença do mastro na festa são características que diferenciam as bandeiras dos santos juninos das de São Sebastião (em janeiro) e de São Filipe (em maio).

Outras bandeiras

Os outros santos do mês de junho são festejados com menos intensidade que São João, mas São Pedro cobre grande parte da ilha. No fim do mês há São Paulo e, no segundo domingo de Julho, a curiosa festa de São Paulinho, que de religiosa nada tem. Conta-se que em certa data, no início do século XX, a festa de São Paulo na localidade de Luzia Nunes foi tão bonita e animada que dois irmãos de uma localidade próxima, Penteada, ao regressarem à casa decidiram continuar por mais três dias. Se a lenda é essa, o facto é que todos os anos há festa em Penteada nessa altura.

 

A música na festa de bandeira

Como um dos seus elementos de destaque, a festa de bandeira conta com toques de tambores e cantos. Um grupo formado por cantadeiras e tamboreiros desfila pelas ruas da cidade às vésperas da festa e no próprio dia. Eles participam também na festa do pilão.  Ao longo do tempo, alguns destes personagens tornaram-se célebres, como Tchitchite e Valdomiro Dias, tamboreiros, e Tintina Mané di Beja e Nha Idalina, coladeiras, como são chamadas as mulheres que entoam os cantos.   

No primeiro dia de festa, a tarefa de pilar o milho para o xerém (comida tradicional do Fogo, que acompanha a carne) é realizada ao som das cantigas entoadas pelas coladeiras (kolá – nao confundir com a dança do mesmo nome nas ilhas de Barlavento) e pelo toque dos tambores.

Brial

A palavra brial é a designação genérica para os diferentes ritmos de tambor, conforme os vários momentos da festa. Existe por exemplo o “Brial de Cabalero” (toque para reunir os cavaleiros), “Brial di Pississom” (toque que acompanha a procissão), e assim por diante, esclarece Rosário, que acrescenta: “A palavra brial em si é uma onomatopeia, reproduzindo um rufar curto e rapido no tambor com pequenas variações”.

No momento de pilar o milho que será utilizado na refeição coletiva servida no dia do santo, há muita música, com cantos e percussão. Uma pessoa distribui o milho pelos vários pilões e depois irá recolher o produto já processado. Tudo isso cantando e batendo palmas, tal como o fazem pessoas que se agrupam ao redor dos tambores e pilões. Ao mesmo tempo, os paus-de-colexa (baquetas de percutir) marcam o compasso na lateral dos pilões, o que, somado ao baque do pau-de-pilão a triturar o milho e ao toque dos tambores, forma um potente conjunto sonoro, que não deixa ninguém indiferente. Era assim numa festa de 1936 que Henrique Teixeira de Sousa descreveu (Artiletra, 1998) e é assim na atualidade. 

Os tamboreiros e as cantadeiras marcam presença também no momento da matança do animal cuja carne será servida no dia do santo. E também podem ser vistos circulando pelas ruas da cidade, em determinados momentos do dia, tocando e cantando. Uma das coladeiras entoa uma frase musical que é respondida pelas outras em coro.    

Os cantos e toques da bandeira registados em disco

Gravações que revelam o lado musical da festa de bandeira foram realizadas na década de 1990, por uma equipa da Radio France Internationale (RFI), no âmbito das pesquisas do antropólogo francês Jean-Yves Loude e a fotógrafa Viviane Lièvre. Constam do CD Cap-Vert – Un Archipel de Musiques (Ocora, 1999).

A sessão de gravação foi dirigida por Fausto do Rosário, e decorreu no largo situado abaixo das escadarias do Presídio, em São Filipe, onde se encontra o busto de Pedro Cardoso. O áudio regista o ritmo do “Pilon”, tocado durante a preparação do milho. “Abre com o toque de “colexa” que é o ritmo de base que marca o compasso dos paus de colexa; seguem-se os três tambores e finalmente as coladeiras… Nesta gravação está presente o que se pode chamar a nata dos tamboreiros e coladeiras do Fogo. Tamboreiros: Valdemiro Dias, Talulu, Tenteia (RIP). Tocador de colexa: Papa Querena (RIP). Coladores e coladeiras: Nataneh, Nho Sopa, Idalina, Maria Tchuneta, Minguinhae e Budjodja”, relata Fausto do Rosário, fonte sempre procurada pelos que buscam informações sobre temas históricos e culturais do Fogo.  

Outro disco que regista esses cantos e toques de tambor, também editado em França, é Iles du Cap-Vert – Les Racines (editora Playa Sound), editado em 1990, com recolhas de música tradicional efetuadas por Manuel Gomes.  

Recriações das músicas da festa de bandeira

Em tempos recentes, os ritmos executados tradicionalmente na festa de bandeira foram adaptados por diferentes artistas, resultando em composições autorais que foram gravadas, entre outros, por Mayra Andrade (“Nha Damaxa”, de Kim Alves, e “Tchapu na bandera”, de Djoy Amado). Antecedendo estes músicos, os Mendes Brothers introduziram no álbum intitulado justamente “Bandera” (1995) uma composição da sua própria autoria alusiva a estes cantos.

Por sua vez, o grupo Raiz di Djarfogo, que fez gravações no âmbito das mesmas recolhas de que resultou o CD duplo Cap-Vert – Un Archipel de Musiques, teve um disco editado em seu nome, Cap-Vert Raiz di Djarfogo (Ocora, 1999), no qual aparece o tema “Brial”. E Talulu, ele próprio tamboreiro durante as festas, em parceria com Lívio Lopes adaptou o tema “Braga Maria”, com letra de Ana Procópio, gravando-o no seu álbum que tem o mesmo título. 

Estrelas do Fogo, na Alemanha, 2009. Foto: Rolf K. Wegst, cedida por Markus Leukel.

O músico e investigador alemão Markus Leukel, que trabalha sobre os ritmos tradicionais de Cabo Verde, onde reside desde 2008, passou alguns meses na ilha do Fogo, aprendendo com o tamboreiro Valdomiro Dias os vários toques das festas de bandeira, que transpôs para partitura. Em 2009, organizou uma tournée de artistas da ilha reunidos sob o nome Estrelas do Fogo – o próprio Valdomiro, Nha Idalina, Michel Montrond, entre outros – pela Alemanha, Áustria e Luxemburgo.

Para saber mais

Cabo Verde: O Ritual das Festas das Bandeiras da Ilha do Fogo, de José Maria Semedo e Maria R. Turano. Edição do Instituto de Investigação e do Património Cultural.

Ver e ouvir

Referências:

Monteiro, Félix, “Bandeira: o senhor e o escravo divertem-se”. Claridade, maio 1958.

Nogueira, Gláucia. “As festas da fé”. A Semana, 23.06.2006.

Nogueira, Gláucia. “Entrevista – José Maria Semedo: Fé na bandeira é autêntica”. A Semana, 23.06.2006.

Rosário, Fausto do. Comunicação pessoal, 2022. 

Sousa, Henrique Teixeira de, “São João na ilha do Fogo”. Artiletra, 1998.

Agradecimentos a Fausto do Rosário pelo apoio à produção desta página.

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