Contradança

Por GN em

Grupo Pe na Tchõ, São Nicolau. Foto cedida por José Manuel Duarte Monteiro.

Os bailes ou danças propriamente da terra, acompanhadas de cantigas e palmas, passaram já de moda, substituídas por contradanças francesas, com muitas e complicadas marcas…

Joaquim Vieira Botelho da Costa, em “A Ilha de S. Vicente de Cabo Verde: Comunicação à Sociedade de Geographia de Lisboa” (1882)

Por Gláucia Nogueira

A contradança é uma sequência de danças, executada por um grupo de pares sob o comando de um “mandador”, ou “comandante”. Chegou a Cabo Verde no século XIX, quando fazia parte das danças da moda na Europa, e foi praticada nos salões da elite cabo-verdiana, que seguia os padrões europeus.  

De modo geral, entre as suas características estão o número par de participantes, que são distribuídos aos pares; coreografia baseada em trocas de parceiros; passos simples e com poucas variantes; variadas coreografias; duas formações de base – fila e círculo; as filas com homens e mulheres a confrontarem-se.

Na contradança cabo-verdiana os comandos são uma mistura de expressões francesas com palavras do português e do cabo-verdiano, como Chenenglése, sacaceplacê, balancê, tranvancê, chocêcatre turdimen, restê.

Embora a contradança seja uma coreografia, frequentemente os compositores ou intérpretes utilizam a palavra como sendo indicativa de um género musical. Em geral, trata-se de uma mazurca ou koladera, que fazem parte da sequência de danças da contradança. Ouça exemplos da denominação “contradança” em gravações dos músicos de São Nicolau Miguel Nibia, no CD Music from São Nicolau : Cabo Verde – Ilhas do Barlavento, e Mané Pchei, com três faixas intituladas “Contradança” no CD Conjunto Mané Pchei.

Atualidade da contradança

Em Cabo Verde, os atuais praticantes da contradança encontram-se sobretudo na ilha de São Nicolau. Um grupo da localidade de Cachaço, Pé na Tchõ, faz atuações para turistas e professoras do ensino fundamental organizam grupos de estudantes que ensaiam regularmente e fazem apresentações pontuais: grupos Raízes de Dragoeiro (Tarrafal de São Nicolau) e Tradição de Noss Ilha (Ribeira Brava). Em Santo Antão, a prática é apenas residual na atualidade. Na ilha do Fogo, por sua vez, onde a contradança recebeu o nome de “paravante”, o Grupo Cultural Ana Procópio luta pela sua preservação. Entre as comunidades cabo-verdianas emigradas, existem grupos de contradança ativos no Luxemburgo (Contradança), na França (Os Doze de Paris, formado por pessoas de Santo Antão) e na Holanda (Dragoeiros).  

Grupo Tradição de Noss Ilha, da Escola do Ensino Básico Integrado “Luís Gominho”, Ribeira Brava. Imagem cedida por Maria Natalina S. Leitão

História

Contradança, contredanse, country dance: estes termos se relacionam ao longo da sua história. The New Grove Dictionary refere que country dance foi uma dança muito difundida na Inglaterra no século XVII e que se espalhou pelo continente europeu, fixando-se em particular em França, onde veio a ser conhecida como contredanse. Aqui ela teve o seu apogeu em fins do século XVIII e início do XIX, suplantando o minueto, que fora a dança em voga até então. Em meados do século XIX, foi obscurecida pela valsa e a polca.

Os termos “contradança” e “quadrilha” aparecem interligados e acabam por ser equivalentes.  No século XVIII, a palavra “quadrilha” designava um grupo de dançarinos nos balés franceses. A popularidade das contradanças em balés levou a que, nos bailes, um conjunto de contradanças fosse designado como uma “quadrilha de contradanças”.Mais tarde, abreviou-se o termo para “quadrilha” simplesmente.

A quadrilha geralmente consiste em cinco partes (coreografias), também chamadas “figuras”. Em termos musicais, trata-se de uma suíte com cinco movimentos. Essas partes mantinham os nomes das contradanças que originalmente estabeleceram o padrão, mesmo quando se tocava uma nova composição: “Le pantalon” (adaptado de uma canção que dizia “Le pantalon/De Madelon/N’a pas de fond”), “L’été” (uma contradança bem conhecida em 1800), “La poule” (1802), “La Pastourelle” (baseada numa balada do trompetista Collinet) e uma animada “Finale”. Excetuando “La Poule” e às vezes “Le Pantalon” ou a “Finale” (em seis por oito), os temas eram em compasso dois por quatro e em geral adaptados de cantigas populares ou canções do teatro.

Ao chegar à América do Norte, a quadrilha dá origem à chamada square dance, nos EUA, e à danse carrée, no Canadá. No Brasil, o nome adotado foi “quadrilha”.

Em Cabo Verde,  vários relatos do século XIX revelam a presença da contradança nas práticas de sociabilidade da elite: Chelmicki e Varhagen (na obra Corographia Cabo-Verdiana. Ou Descripção Geographico-Histórica da Província das Ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841) referem “contradanças francesas e inglesas e a valsa” em “reuniões que têm caráter europeu”. Em 1885, quando os exploradores Capello e Ivens passaram pelo Mindelo no regresso da sua expedição ao continente africano, dançaram uma quadrilha numa festa em sua homenagem nos paços do concelho. “Abriu-se a soirée, figurando na primeira quadrilha o governador e sua exm.ª esposa, dançando esta com o explorador Capello, e Ivens com outra dama das muitas que concorreram à reunião” , lê-se no texto assinado por Joaquim Vieira Botelho da Costa dirigido à Sociedade de Geografia de Lisboa (Boletim Oficial, 3 de outubro de 1885).

Uma descrição de 1913 mostra que no início do século XX ela estava na ordem do dia. Trata-se de um baile, na cidade da Praia, em que o autor do texto, sob o pseudónimo Roele, fala da parte final de um baile: “Depois da lua já meio envergonhada se ter escondido, e começar pelo levante a romper o lusco-fusco, o amigo Monteiro vai batendo as palmas e mandando “chaq’un à ses places” […] “traversez, rond de dames” e assim vai continuando…” (A Voz de Cabo Verde, 21 de abril de 1913).

Na década de 1930, período em que tradição e inovação se mesclam, a imprensa cabo-verdiana traz registos dessa prática: uma “brilhante quadrilha” foi organizada pelo senador Vera-Cruz durante um baile no liceu Infante D. Henrique, no Mindelo (Notícias de Cabo Verde, 22 de março de 1931). Em 1937, o mesmo jornal refere “uma série ininterrupta de valsas, maxixes, mornas, sambas, blues, e uma quadrilha marcada com grande entrain, pelo Sr. Smith Benoliel de Carvalho” (Notícias de Cabo Verde, 1 de junho de 1937), mostrando que novidades musicais e a contradança conviviam ainda nos mesmos eventos.

Nos tempos mais recuados, os “mandadores” eram homens de prestígio, como o senador Vera Cruz ou o comerciante Benoliel de Carvalho. Com o tempo, contudo, esta prática acabou por “democratizar-se”, através de bailes populares, em que o mandador era um homem do povo, muitas vezes analfabeto, que pronunciava as palavras a seu modo.

A partir da década de 1940, com novas modas de dança e música, a contradança passou a ser considerada como algo antiquado e praticamente em desuso. Depois da independência, quando a política cultural do novo poder instituído incentivava a valorização das tradições populares nas ilhas, a Juventude Africana Amílcar Cabral (JAAC-CV) e a Organização dos Pioneiros Amílcar Cabral (OPAD-CV) dinamizaram atividades com vista a resgatar essa tradição do esquecimento. As crianças e jovens aprenderam a dançar, houve concursos de contradança e espetáculos que lhe deram visibilidade, fazendo com que ela resista até hoje.

Para saber mais

  • Músicas e Danças Europeias do Século XIX em Cabo Verde: Percurso de uma Apropriação – Tese de doutoramento de Gláucia Nogueira (2020).
  • Programa “Revista”, TCV (ver abaixo)

Ver e ouvir

Referências:

“O 28 de maio”, Notícias de Cabo Verde, 01.07.1937.

Chelmicki e Varhagen. Corografia Cabo-Verdiana ou Descrição Geográfico-Histórica da Província das Ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841, tomo II.

Costa, Joaquim Vieira Botelho da. “A Ilha de S. Vicente de Cabo Verde: Comunicação à Sociedade de Geographia de Lisboa (1882)”. Raízes, dez. 1980, n. 7.

Roele, “Carta a um exótico”. A Voz de Cabo Verde, 21.04.1913.

The New Grove Dictionary of Music and Musicians

Grupo Cultural Ana Procópio, ilha do Fogo, entrevistas.

Animadores de grupos de contradança em são Nicolau: José Manuel Duarte Monteiro, Maria Natalina Silva Leitão, Alécia, Alécia Pereira, Ricardo Lima de Brito, entrevistas.

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