O Carnaval de São Vicente e a Música
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Por Carmo Daun e Lorena
O carnaval de São Vicente, que conta com mais de um século de história, foi desde sempre marcado pela dinâmica do Porto Grande. Nos finais do século XIX e inícios do XX, as novas gentes, ideias e costumes que chegavam por mar tinham um enorme impacto na vida cultural e social do Mindelo. As presenças inglesa e brasileira foram das mais determinantes, exercendo inclusive uma grande influência nas formas de festejar dos ilhéus. O carnaval não escapou a essas marés.
Uma das primeiras ideias que nos vem à mente quando pensamos em Carnaval é justamente o Brasil e isto é ainda mais certo e evidente em São Vicente. Na famosa música “Carnaval de São Vicente”, da autoria de Pedro Rodrigues, canta-se um dos versos mais icónicos da ilha e do seu carnaval: “São Vicente é um Brasilim…” A influência do Brasil no carnaval de São Vicente é de longa data e permanece até aos dias de hoje. Não é apenas musical, é muito mais abrangente, mas a música e a dança são duas expressões vivas dessa inspiração.
B.Léza, uma das figuras mais prestigiadas do panorama musical de Cabo Verde, tinha no Brasil uma das suas maiores referências. Não por acaso, em meados da década de 1920, ele fundou o grupo Floriano. O grupo terá sido criado no Mindelo, mas foi replicado, pela mão do seu mentor, na ilha do Fogo, para onde Francisco Xavier da Cruz foi trabalhar em 1927. Foi com esse grupo que B.Léza introduziu o carnaval no Fogo. Contudo, a participação de B.Léza no carnaval mindelense não se resumiu ao seu grupo Floriano. Ele escreveu e compôs músicas para outros grupos carnavalescos, como o Oriundo ou o Estrela da Marinha. B.Léza foi um dos precursores do carnaval de São Vicente, enquanto mobilizador de um grupo organizado, mas participou também, com as suas marchas, no fortalecimento de uma tradição mindelense de bailes e festejos carnavalescos, de forte herança brasileira.
Como informam vários relatos, as músicas que soavam no Brasil chegavam a São Vicente e causavam sensação. E os grupos de carnaval no Mindelo adotavam não só ritmos, mas nomes brasileiros (Floriano, Belo Horizonte, Baiano, Fluminense, Bota Fogo, etc.). Baltasar Lopes, no célebre romance Chiquinho, dá-nos conta dos bailes de carnaval da década de 1930: “No baile dos derbianos a farra ferve. O carnaval desembocou ali. Mete furor o samba novo que veio nos discos. (…) Há fantasias de vários gostos, mas todos têm de ostentar a legenda do Derby. Levantou-se uma grande rivalidade com o Grupo Baiano.” (Lopes 2006 [1947]:133-134).
Mas afinal como era este carnaval de antigamente?
O carnaval de diasá
O carnaval de outrora era festejado sobretudo com bailes. Mais tarde, surgem os chamados blocos com os seus cortejos e o carnaval passa a ser vivido também na rua. Para além dos bailes e desfiles carnavalescos, havia ainda os assaltos, que consistiam na “invasão”, por pequenos grupos de foliões, a certas casas particulares ou associativas, onde entravam e faziam uma festa de improviso, com música e dança.
Havia no Mindelo muitas salas de baile. As salas mais populares e onde se realizava a maioria dos bailes dividiam-se entre aquelas que pertenciam a agremiações desportivas (Castilho, Derby, etc.) e as que eram propriedade individual e que os donos alugavam ou disponibilizavam aos grupos de carnaval (salas de Jon Tolentino, Zé de Canda, Nhô Fula, Djacô, Dublinha, Toi Bintim, entre outras). O Rádio Clube do Mindelo era outra sala frequentada. O cinema Éden Park recebia também alguns dos mais vibrantes bailes da cidade. Eram os chamados “bailes do cinema”. No carnaval, esses bailes eram especialmente animados. Os bailes de carnaval do Éden ficaram, aliás, registados numa das canções mais conhecidas do carnaval de São Vicente, a coladeira “Intentaçon de Carnaval”.
Um componente essencial de todos estes bailes eram as bandas de música que tocavam ao vivo, tanto êxitos internacionais, como temas de compositores locais.
Mas o carnaval também vinha para a rua, nos blocos. Teixeira de Sousa, no seu romance Capitão de mar e terra, oferece uma descrição detalhada dos animados cortejos de carnaval dos anos 1930: “Cerca das duas horas começaram a concentrar os blocos carnavalescos no Largo da Salina. Vindos do Oriente foram os primeiros a marcar a sua presença. Traziam trajes asiáticos adquiridos na loja de Shankaranan, quimonos, saris, turbantes de variegadas cores. (…) Depois chegaram os Ribeira-botianos num estrado ornamentado de fitas e galhardetes, e puxado por duas mulas impecavelmente ajaezadas. O Belo Horizonte apresentou-se com um enorme andor conduzido por uma equipa de doze robustos catraeiros. (…) Os Sempre Fixes primavam pela algazarra dos tambores e cornetas. Eram os mais modestos nos costumes, até sacos de sarapilheira lhes serviam de vestuário. Agora, a Estrela da Marinha foi um deslumbramento. O maior camião da ilha metamorfoseou-se num invencível couraçado com peças potentes à ré e a meia-nau. (…) todos, blocos, conjuntos musicais, acompanhantes, se preparavam para invadir a cidade com o cortejo mais louco que até essa data já se fizera. Os ânimos andavam excitados, os botequins de bairro esgotaram os seus stocks de aguardente. Adultos e crianças, mancos e aleijados, pobres e remediados, compareceram ao desfile desse ano, para marchar, para cantar, para gritar, até para cometer abusos se fosse preciso.”
O mundo musical e o mundo do carnaval sempre se misturam. Os blocos eram animados pela música, especialmente escrita para eles, mas as intersecções entre música e carnaval vão além disso. Por exemplo, Luluzim e Lela de Maninha, dois nomes de relevo na cena musical mindelense, participaram em grupos antigos como o Oriundo e o Original. A propósito do grupo Oriundo, são de referir duas composições de B.Léza: uma marcha de carnaval, “Marcha de Oriundo”, e uma morna, “Oriundina”, que ele dedicou à rainha do grupo com o mesmo nome. A música influenciava o carnaval e o carnaval influenciava a música. Foi também o caso, nos anos de 1960, da coladeira de Frank Cavaquim, “Quem tem ódio (d’nôs)”, que faz alusão a uma briga entre grupos de carnaval.[1]
Um grupo emblemático do carnaval de São Vicente foi o Lombiano. Criado por Ti Goy nos finais dos anos 1950, esteve bastante activo durante a década de 1960, reaparecendo depois em 1974, ano da sua última apresentação. Mas Ti Goy, fundador e presidente do grupo Lombiano, participou em muitos outros grupos carnavalescos e fez músicas para muitos mais, como foi o caso do Flor Azul.
Outros personagens, porventura menos conhecidos, desempenharam também um papel fundamental ao impulsionarem a cena musical e carnavalesca de São Vicente. Foi o caso de Alfredo Júlia Fortes (1912-1992), conhecido por Ti Fefa ou Alfredo de Carmo, um virtuoso clarinetista e um carpinteiro-marceneiro muito reputado. Colaborou com vários grupos carnavalescos. Como músico, integrou a Banda Municipal e embora tocasse também violão e bandolim, foi com o clarinete que se projetou. E foi na qualidade de clarinetista que animou muitos bailes de orquestra nas décadas de 1950 e 1960. É nessa altura, juntamente com alguns dos seus companheiros, como Jack Estrelinha, Lela Preciosa, Ti Goy, ou Frank Cavaquim, que forma a banda musical Benitómica.
Outro nome nem sempre lembrado, apesar de ter sido à época fulcral na dinamização da música e do carnaval, é o de Adriano Delgado (c. 1926-?). Sapateiro de ofício, empregou-se depois na loja JBC (daí ser conhecido por Adriano de JBC) e era pessoa reconhecida no carnaval mindelense, tendo estado muito ligado ao grupo Flor Azul e, posteriormente, ao grupo Estrela do Mar e ao Onze Unidos (tendo sido o presidente deste último, que recuperou o nome de um grupo de animação dos anos 1960). Não obstante as suas diversas ocupações, Adriano Delgado foi um afamado compositor de marchas e sambas.
Mas também muitos músicos ilustres colaboraram com grupos carnavalescos, entre os quais Luís Morais ou Manuel d’Novas. E convém salientar que o carnaval tem prestado as devidas homenagens aos músicos da terra, seja através dos carros alegóricos que se exibem nos desfiles, seja através das músicas que se cantam. São disso exemplo a canção “Nôs Maéstre”, referindo-se a Luís Morais, que as Baianas do Mindelo apresentaram em 2005, ou os temas “Spot light pa Ti Goi” e “Um grand entusiasta”, que o grupo Flores do Mindelo apresentou no carnaval de 2007 como tributo a Ti Goy.
O carnaval de hoje
Há quem diga que o carnaval do Mindelo se assemelha demasiado ao carnaval brasileiro, sobretudo ao carioca. Independentemente das controvérsias à volta deste assunto, as inspirações e semelhanças são inegáveis. E como vimos, a influência do Brasil no carnaval mindelense já vem de outros tempos. No que à música diz respeito, ainda nos anos 1970, essas parecenças eram notadas. Dizia o jornalista brasileiro Almyr Gajardoni, de passagem por São Vicente na década de 1970: “(…) a semelhança com a música popular brasileira se torna realmente espantosa. A “coladeira” é tipicamente um samba do carnaval brasileiro. Se levarmos para uma emissora de rádio do Brasil (…) certamente o ouvinte brasileiro, principalmente da cidade do Rio de Janeiro que é a capital do nosso carnaval, vai tomá-la como música carnavalesca (…) E o outro tipo de música – a “morna” – é em tudo semelhante ao nosso samba-canção.” (O Arquipélago, 20.04.1972)
Hoje em dia, a música do carnaval mindelense, ainda que com ritmos marcadamente brasileiros – a música e a dança de eleição é o samba –, apresenta-se com novas roupagens e absorve outras influências. Começa a despontar uma nova geração de compositores locais, que dão continuidade ao legado dos seus antecessores, cujo nome já está bem firmado. É o caso de Vlu, um dos primeiros a escrever músicas de carnaval em crioulo e um dos nomes mais sonantes entre os compositores de carnaval. Além de continuar a assinar músicas para vários grupos carnavalescos, Vlu & Banda animam também vários bailes de carnaval pela cidade. E Vlu é ainda o promotor do trio elétrico Mindel Fantasy, que organiza um dos desfiles mais badalados do carnaval do Mindelo.
Atualmente, outros nomes têm projecção, mas durante muito tempo, Vlu e Constantino Cardoso eram os compositores mais solicitados e alternavam entre si na competição pelo prémio de melhor música.
Um importante impulso para a criação musical foi a instituição em 1992, pelo Centro Cultural Português, do prémio de Melhor Música do Carnaval, embora já fosse atribuído um troféu à música dos grupos desde a década anterior. Todavia, este concurso apenas abrange os grupos carnavalescos que participam na competição oficial e deixa de fora muita música e muito carnaval. Desde logo, a música do influente grupo Samba Tropical, mas também grupos mais modestos, mas nem por isso menos criativos, como é o caso do grupo dos Professores, que escrevem as suas próprias letras. Outro caso paradigmático, que traz muita música e animação ao carnaval, são os Mandingas, uma das maiores atrações do carnaval de São Vicente.
São animação antiga, mas a sua apresentação mudou muito ao longo dos tempos. Entre os aspetos que mais se alteraram está o acompanhamento musical que hoje se caracteriza por uma forte batucada com dezenas de instrumentistas, mas que antigamente se fazia com meia dúzia de tocadores de violão.
Alguns temas ainda hoje entoados nos desfiles dos Mandingas são de outros tempos. É o caso da célebre e antiga canção “Oh mascrinha, oh mascrinha, mascrinha de cu pelód”. Esta música, com insinuações de cariz sexual, é cantada pelo menos desde os anos de 1950, ainda que haja várias versões da mesma. Mas os Mandingas têm uma pujança musical muito própria. Na verdade, uma pujança rítmica, já que o seu enorme e animado desfile se faz sobretudo ao som de uma batucada composta por vários instrumentos de percussão.
De muitas sonoridades se faz o carnaval de São Vicente. A percussão não pode faltar e apesar de atualmente existirem vários mestres de batucada na ilha, Mick Lima foi pioneiro e é o mais experiente e respeitado mestre de batucada do carnaval mindelense, sendo o principal formador das novas gerações. Todos os grupos oficiais de carnaval, bem como o Samba Tropical, têm uma batucada devidamente organizada e sincronizada. São eles o motor do desfile.
Mas a percussão acompanha também outros cortejos, designadamente os dos Mandingas que arrastam multidões.
Tucim Bêdje é um grupo musical do bairro da Ribeira Bote que costuma acompanhar os Mandingas do mesmo bairro. O seu dinamizador e vocalista, Paulo Block (nome artístico), tem as suas músicas gravadas em mp3, canções essas que circulam pelo bairro e um pouco por toda a cidade. As músicas do grupo são o reflexo da história e da vivência local, do bairro e da cidade. Entre os seus vários êxitos musicais, conta-se o tema apresentado em 2010, “Capitão Ambróse”, aludindo a uma revolta ocorrida em junho de 1934.
Mas a atração pelos Mandingas sente-se para lá dos limites de cada bairro e respetivos grupos. Vários músicos de renome dão destaque aos Mandingas nos seus trabalhos, como fez em 2011 Constantino Cardoso, com o seu álbum Ariá!!!, e Jennifer Solidade em 2016, com o tema “Ariah”, ambos referência ao grito de guerra dos Mandingas.
Música e Carnaval complementam-se mutuamente, mas a influência da primeira no segundo pode ir além da sua inspiração rítmica. O bairro de Monte Sossego no Mindelo orgulha-se de ter um dos maiores grupos carnavalescos da cidade. O grupo e o bairro são hoje apelidados de Montsú (abreviatura de Monte Sossego), graças a uma música que o grupo apresentou no carnaval de 2016, “Um one ne Soncente” da autoria de Constantino Cardoso. O carnaval já empresta ao bairro a sua própria denominação. Mas ao longo de mais de 35 anos, muitas outras canções marcaram a vida do grupo. Uma delas, de 1995, também descreve o bairro: “Terra d’Índio”, do compositor Manuel d’Novas, que aliás, ganhou o título de melhor música do carnaval desse ano. Este caso ilustra bem como o carnaval reflete a vida da ilha. Na verdade, tudo o que ficou escrito atrás demonstra que ele é parte integrante da vida e da história dos mindelenses. Mas tudo isto são apenas fragmentos, peças de um puzzle bem mais complexo e inspirador que todos os anos se faz e refaz no fascinante Carnaval de São Vicente.
[1] Agradeço a Francisco Sequeira esta informação.
Bibliografia
Lopes, Baltasar. 2006 [1947]. Chiquinho. Lisboa: Nova Vega.
Lorena Santos, Maria do Carmo F. Daun e. 2018. Classe, memória e identidade em Cabo Verde: uma etnografia do carnaval de São Vicente. Tese de doutoramento. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Moacyr Rodrigues, Gabriel. 1998. Carnaval. Mindelo de Cabo Verde. Mindelo: Edições Calabedotche.
Moacyr Rodrigues, Gabriel. 2010. «O ambiente musical no Mindelo e a formação de um compositor: o caso de B. Lèza». Imagens da Cultura. Actas do VI Seminário Imagens da Cultura / Cultura das Imagens: 101-111.
Moacyr Rodrigues, Gabriel. 2011. O Carnaval do Mindelo. Formas de reinvenção da festa e da sociedade. Representações mentais e materiais da cultura mindelense. Edição do autor.
Monteiro, César Augusto. 2003. Manel d’Novas. Música, vida, caboverdianidade. Edição do autor.
Nogueira, Gláucia. 2005. O Tempo de B.Léza. Documentos e Memórias. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro.
Teixeira de Sousa, Henrique. 1984. Capitão de mar e terra. Mem Martins: Publicações Europa-América.
Varela, João Manuel. 2000. «Brazil and the Cape Verde Islands: some aspects of cultural influence». Diogenes, Vol. 48, n.º 191: 91-108.
Para saber mais
Classe, memória e identidade em Cabo Verde: uma etnografia do carnaval de São Vicente. Tese de doutoramento de Maria do Carmo F. Daun e Lorena Santos. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2018.
Carnaval. Mindelo de Cabo Verde. Gabriel Moacyr Rodrigues (Mindelo, Edições Calabedotche, 1998).
O Carnaval do Mindelo. Formas de reinvenção da festa e da sociedade. Representações mentais e materiais da cultura mindelense. Gabriel Moacyr Rodrigues (Mindelo, edição do autor, 2011).
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