Cantigas de guarda-de-sementeira
Por Gláucia Nogueira
A agricultura de sequeiro (não irrigada) predomina em Cabo Verde. Em Cantigas de Trabalho, Oswaldo Osório recorda que aproximando-se a época das chuvas – azágua na linguagem local – os agricultores podem optar por fazer a sementeira no terreno seco ou logo depois das primeiras precipitações. Em qualquer dos casos, há cuidados especiais para proteger as plantinhas dos corvos, pardais e galinhas-de-mato que, “esfaimados, sobretudo se for em tempo seco, adejam e investem as covas semeadas em pó ou os tenros caules que começam a despontar logo a seguir às primeiras águas”. É nesse contexto que surgem as cantigas que têm o objetivo de espantar as aves.
“O corvo, este, ataca desde o despontar do dia ao entardecer, quer investindo as covas semeadas em pó, sobre que se coloca uma pedra para proteger as sementes aí depositadas e que é retirada após os primeiros aguaceiros a fim de facilitar o crescimento da planta, quer arrancando pelas raízes, num safanão, as plantinhas de escassos dias de vida, para comer os grãos de milho ainda intumescidos”, escreve Osório.
Os pardais, por sua vez, “cortam, rente ao chão, o caule, com um traço firme de navalha afiadíssima, para aproveitar a parte mais mole e ainda enrolada do que viriam a ser as folhas. As galinhas-de-mato esgaravatam desajeitada e pesadamente as covas, debicando os grãos de milho que, desse modo, ficam a descoberto”, prossegue.
Os temas das cantigas podem variar, mas os personagens são sempre os mesmos: o corvo, “sombra negra do agricultor que o apostrofa violentamente e cuja presença é tida como prenúncio de mau agoiro, só aparecendo, diz-se, quando o ano é mau”; a galinha-de-mato, conhecida em Cabo Verde como pelada; e o pardal (txota). Segundo o livro, a tradição dessa prática não difere muito de ilha para ilha, já que as condições são semelhantes. Apenas as letras e o ritmo varia.
De madrugadinha, o guardador começa a sua faina, para só regressar à casa ao anoitecer. Por isso em Santiago se diz: “Pega ku txota larga ku grilu” (Pegar com os pardais e largar com os grilos). Efectivamente, aponta Oswaldo Osório, os pardais anunciam o amanhecer e os grilos o cair da noite.
Ainda com as estrelas lá vai ele, descalço, geralmente rapazinho de uma dúzia de anos, levando no surrão ou “sarraia ” alguma batata-doce assada, “camoca”, cachupa fria, e um “b’li” ou vasilha de calabaceira, com leite para o “passar” do dia.
(…) Com o primeiro sinal da aurora os pardais enchem a região de chilreios e, num esfomeamento incontido, invadem as searas. À medida que o sol vai subindo aparecem os corvos, que atacam os locais, conseguem afastar as pedras à procura das sementes. De todos os lados ouvem- se, em sinais de alerta, as cantigas-de-sementeira que o guardador entoa aos gritos acompanhados de bater de lata, para que os “daninhos” se afastem e saibam da presença de gente que está resolvida a defender seus recursos. Essas cantigas também servem de consolação àquela vida de arremessar pedras o dia inteiro com fundas-de-estalo, num correr de um ponto para outro, a avisar os demais que por descuido deixaram os bichos descer. O pessoal, de tanto gritar fica rouco. É um verdadeiro castigo que se prolonga, por vezes um mês inteiro.
Com o desabar das primeiras chuvas, verificam-se lugares vazios. É nessa fase que a defesa se torna mais importante porque os pardais, madrugada alta, mergulham sobre as “cravelas” ou primeiros grelos e fazem prejuízos que podem destroçar uma novidade na sua maior parte.
Todos se empenham nessa luta de garantir o pão cabo-verdiano que é o milho. Há alertas de uma rocha para outra. Pedras-de-funda varam os ares num zunido que vai afugentando os passarinhos e os ecos repetem o estalar de cada lance. As famílias se unem, os meninos açulam os cães aos berros, e assim, até as plantinhas medrarem, é um desvelo constante, já que ninguém ignora o que significa um “ano-de-carestia” na terra.
Luís Romano em “Cabo Verde – Renascença de uma Civilização no Atlântico Médio”, citado em Cantigas de Trabalho.
Assim, posicionados em pontos estratégicos, os encarregados de enxotar as aves vão entoando cantigas. Em alguns casos, o último verso pode ser repetido para chamar a atenção de um companheiro distraído, em outro cutelo, que a retoma pelo início enquanto faz girar a funda, arremessando uma pedra para afugentar os invasores. Enquanto isso, em outro cutelo a canção recomeça…
Segundo Osório, aparentemente essas cantigas tinham inicialmente uma função meramente utilitária, que continuam a ter, mas terão adquirido, com o tempo, a qualidade de servir de consolo “àquela vida de arremessar pedras o dia inteiro”, como refere Luís Romano noutro trecho.
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