Festas de bandeira na Ilha do Fogo – São Filipe

Por GN em

Tamboreiros e coladeiras percorrem as ruas de São Filipe. Festa da Bandeira de 2006. Foto: Gláucia Nogueira

Por Gláucia Nogueira

As festas de bandeira são uma forte tradição na ilha do Fogo. A bandeira de São Filipe, que se comemora no dia 1 de maio, mas começando com três dias de antecedência, atrai para a ilha nesta época do ano milhares de pessoas e mobiliza a população local à volta dos festejos. Estes incluem procissão, missa, corrida de cavalos, toques de tambores e cantos, o canizade (grupo de mascarados que percorre a cidade) e refeição comunitária, entre outros aspectos.

História

Esta manifestação sacro-profana tem origem medieval. Em outros espaços, como no Brasil por exemplo, existem as cavalhadas, uma simulação de guerra entre mouros e cristãos. Na ilha do Fogo, onde a tradição das festas de bandeira terá chegado com os seus primeiros ocupantes portugueses, não há a simulação de batalhas, mas aparecem corridas de cavalo, acrobacias como apanhar argolas, grinaldas de flores, etc.

Em paralelo com a tradição ibérica, há em Cabo Verde os elementos da tradição africana, que introduz o pilão, já que na preparação da festa há a comida, que no passado era feita pelos escravos, e isso acontecia no quintal da casa do festeiro. Um texto de Henrique Teixeira de Sousa datado de 1936 descreve esse momento, mostrando os dois lados da festa: o dos brancos, no primeiro andar do sobrado, e o dos negros, no quintal.

“Lá dentro, pares enlaçados dançam animadamente uma valsa. Perto da varanda, mas muito perto, podem-se ouvir uns sons abafados e dispersos dum violino. O rufar dos tambores e a gritaria da gente do quintal encobrem tudo. Cá fora, apenas se veem os movimentos do salão, enfeitado com balões de variegadas cores. Criadas entram e saem com bandejas nas mãos. Elas olham com inveja o divertimento do quintal. Preferem reunir-se ao grupo que se agita em volta do pilão.”

Henrique Teixeira de Sousa, em “São João na Ilha do Fogo” Artiletra, 1998.
A festa do pilon. Bandeira de São Filipe, 2006. Foto: Gláucia Nogueira

À medida que a noite avança, os garrafões de grogue (aguardente) vão sendo esvaziados, no quintal, e “os pares, lá na sala, prosseguem o baile. Dançam, agora, com lentidão, uma morna”, prossegue o autor. Quando termina a tarefa de preparar, no pilão, o milho que no dia seguinte será cozinhado, acaba a festa dos pobres: os paus de pilão são guardados para o dia seguinte, os tamboreiros desapertam os seus instrumentos e bebem um último trago. O quintal vai se esvaziando, mas na sala de baile a música prossegue com animação até às quatro da manhã. Então, dança-se o “Manchê”.

Por sua vez, num texto publicado na revista Claridade em 1958, o investigador Félix Monteiro aponta: “A aproximação entre a Europa e a África, através das bandeiras, deve ter começado pelos santos populares de junho, istó é, na altura em que ambas festejam ruidosamente, cada uma a seu modo, a passagem do solstício do verão.”

E prossegue: “É possível que as coisas se tenham passado mais ou menos assim: a numerosa criadagem, constituída por escravos, não podia deixar de ser reforçada por ocasião das festas, para acudir aos múltiplos afazeres que lhe eram destinados; assim reunidos em ambiente festivo, certas tarefas, como a matança de reses, a preparação de xerém para seu uso exclusivo, representavam para eles parte de um ritual próprio da época, e daí os cânticos e as danças que acompanham tais tarefas no continente negro. Sob os olhares condescendentes, e porventura atentos e interessados, dos brancos (…) a África foi-se insinuando no programa da festa (…)”.

Segundo o mesmo autor, “uma vez integrados nas bandeiras, os números trazidos da África pelos escravos passaram a constituir os primeiros do programa respectivo, ligados como estão aos preparativos das festas”. E o festeiro convidava pessoas para virem assistir, da varanda do sobrado, às atividades que decorriam no quintal. Depois disso, improvisava-se um baile – com músicas de origem europeia – na sala do casarão, como evidencia o trecho de Teixeira de Sousa.

Félix Monteiro refere que, no passado, só podia assumir a bandeira de São Filipe quem pertencesse à elite de ascendência europeia sem mescla, e fazia-se uma avaliação rigorosa do “pedigree” dos pretendentes. Mas isso não valia para as bandeiras de junho – de São João e São Pedro – , que nada tinham de aristocrático.

Tamboreiros saúdam a imagem de Nho Aniba Henriques. Festa de São Filipe, 2006. Foto: Gláucia Nogueira

Na época em que escreve – década de 1950 – havia, segundo este autor, “por intolerância de certas esferas”, uma tendência para que o programa das festas se desagregasse e, segundo ele, “parece estar a esboçar-se o desígnio inconfessado de as banir”. Não fica claro se banir as festas ou a parte relativa à festa do pilão, herança africana. Para preservar, pelo menos em termos de informação escrita, aquilo que estava ameaçado de desaparecer, Monteiro descreve cada um dos itens da festa da bandeira: tanto os que dizem respeito à herança africana como os resultantes da influência europeia. Provavelmente por limitações técnicas da época, não são publicadas fotografias, que o autor afirma que existiam. Daí a importância ainda maior do seu registo escrito, que hoje nos permite vislumbrar como era a festa naquela época.    

Segundo a tradição oral na ilha do Fogo, a bandeira tinha deixado de ser festejada – diz-se que estava “enterrada” –  durante muitos anos, por razões que essa mesma narrativa não esclarece. Em 1917, foi “desenterrada” por um grupo de rapazes que se denominava “Sete Estrelo”, e eles durante alguns anos foram os festeiros. Desde então, a festa mantém-se viva. Do grupo fazia parte o comerciante Aníbal Henriques, talvez como o seu líder, e ele é hoje o patrono da Casa das Bandeiras.   

Atualidade

Festa da bandeira de 1974. Foto cedida por Fausto do Rosário

A Casa das Bandeiras é a sede da Associação dos Amigos das Bandeiras, criada em 2002 e que ocupa o edifício da antiga alfândega na cidade de São Filipe, doado à entidade pelo governo de então. Atualmente é aí que decorre uma parte dos festejos. A associação tem uma comissão  que designa um júri para decidir quem fica com a bandeira do ano seguinte, entre as pessoas que antecipadamente manifestam o seu interesse.

Provavelmente, as dificuldades económicas ao longo do tempo ditaram que em determinados períodos a tradição da bandeira entrasse em declínio, sendo festejada de forma muito modesta. No período pós-independência, tornou-se hábito instituições tomarem a bandeira (isto é: financiarem a festa), como por exemplo o Fundo de Desenvolvimento Nacional, em 1979, ou o Ministério do Desenvolvimento Rural e Pescas, em 1986. Se tais iniciativas por um lado promoveram a continuidade do evento, por outro lado verificou-se, segundo críticos do governo de então, a sua apropriação pelo partido no poder, o PAICV.

Ao mesmo tempo, ao coincidir com o dia do município de São Filipe, o programa de atividades organizado pela câmara municipal introduziu aspectos alheios aos festejos do santo – como torneios de futebol, concertos e bailes – mas que acabaram por impor-se e que dão o tom da festa hoje em dia.

Festejos da festa de bandeira, sem dada. Foto cedida por Fausto do Rosário

Apesar disso, o eixo central do evento, segundo José Maria Semedo, co-autor do livro Cabo Verde: O Ritual das Festas das Bandeiras da Ilha do Fogo, é a irmandade, a missa, a adoração do santo e a promessa (A Semana, 26.06.2006). 

Apesar dos altos e baixos pelos quais a festa de bandeira tenha passado, tal como outras expressões culturais cabo-verdianas, ela resistiu e está cada vez mais forte. Diferente do que era no passado em alguns aspectos, mas mantendo outros inalterados.    

A música na festa de bandeira

Como um dos seus elementos de destaque, a festa de bandeira conta com toques de tambores e cantos. Um grupo formado por cantadeiras e tamboreiros desfila pelas ruas da cidade às vésperas da festa e no próprio dia. Eles participam também na festa do pilão.  Ao longo do tempo, alguns destes personagens tornaram-se célebres, como Tchitchite e Valdomiro Dias, tamboreiros, e Tintina Mané di Beja e Nha Idalina, coladeiras, como são chamadas as mulheres que entoam os cantos.   

No primeiro dia de festa, a tarefa de pilar o milho para o xerém (comida tradicional do Fogo, que acompanha a carne) é realizada ao som de cantigas denominadas genericamente como brial. Uma pessoa distribui o milho pelos vários pilões e depois recolhe o produto já processado. Tudo isso cantando e batendo palmas, tal como o fazem pessoas que se agrupam ao redor dos tambores e pilões. Ao mesmo tempo, os paus-de-colexa (baquetas de percutir) marcam o compasso na lateral dos pilões, o que, somado ao baque do pau-de-pilão a triturar o milho e ao toque dos tambores, forma um potente conjunto sonoro, que não deixa ninguém indiferente. Era assim na festa de 1936 descrita por Teixeira de Sousa e é assim na atualidade. 

Os tamboreiros e as cantadeiras marcam presença também no momento da matança do animal cuja carne será servida na refeição coletiva que terá lugar durante a festa. E também podem ser vistos circulando pelas ruas da cidade, em determinados momentos do dia, tocando e cantando. Uma das coladeiras entoa uma frase musical que é respondida pelas outras em coro.    

Gravações que revelam o lado musical da festa de bandeira foram realizadas na década de 1990, por uma equipa da Radio France Internationale (RFI), no âmbito das pesquisas do antropólogo francês Jean-Yves Loude e a fotógrafa Viviane Lièvre. Constam do CD Cap-Vert – Un Archipel de Musiques (Ocora, 1999).

A sessão de gravação foi dirigida por Fausto do Rosário, e decorreu no largo situado abaixo das escadarias do Presídio, em São Filipe, onde se encontra o busto de Pedro Cardoso. O áudio regista o ritmo do “Pilon”, tocado durante a preparação do milho. “Abre com o toque de “colexa” que é o ritmo de base que marca o compasso dos paus de colexa; seguem-se os três tambores e finalmente as coladeiras… Nesta gravação está presente o que se pode chamar a nata dos tamboreiros e coladeiras do Fogo. Tamboreiros: Valdemiro Dias, Talulu, Tenteia (RIP). Tocador de colexa: Papa Querena (RIP). Coladores e coladeiras: Nataneh, Nho Sopa, Idalina, Maria Tchuneta, Minguinhae e Budjodja”, relata Fausto do Rosário, fonte sempre procurada pelos que buscam informações sobre temas históricos e culturais do Fogo.  

Outro disco que regista esses cantos e toques de tambor, também editado em França, é Iles du Cap-Vert – Les Racines (editora Playa Sound), editado em 1990, com recolhas de música tradicional efetuadas por Manuel Gomes.  

Em tempos recentes, os ritmos executados tradicionalmente na festa de bandeira foram adaptados por diferentes artistas, resultando em composições autorais que foram gravadas, entre outros, por Mayra Andrade (“Nha Damaxa”, de Kim Alves, e “Tchapu na bandera”, de Djoy Amado). Antecedendo estes músicos, os Mendes Brothers introduziram no álbum intitulado justamente “Bandera” (1995) uma composição da sua própria autoria alusiva a estes cantos.

Por sua vez, o grupo Raiz di Djarfogo, que fez gravações no âmbito das mesmas recolhas de que resultou o CD duplo Cap-Vert – Un Archipel de Musiques, teve um disco editado em seu nome, Cap-Vert Raiz di Djarfogo (Ocora, 1999), no qual aparece o tema “Brial”. E Talulu, ele próprio tamboreiro durante as festas, em parceria com Lívio Lopes adaptou o tema “Braga Maria”, com letra de Ana Procópio, gravando-o no seu álbum que tem o mesmo título. 

Estrelas do Fogo, na Alemanha, 2009. Foto: Rolf K. Wegst, cedida por Markus Leukel.

O músico e investigador alemão Markus Leukel, que trabalha sobre os ritmos tradicionais de Cabo Verde, onde reside desde 2008, passou alguns meses na ilha do Fogo, aprendendo com o tamboreiro Valdomiro Dias os vários toques das festas de bandeira, que transpôs para partitura. Em 2009, organizou uma tournée de artistas da ilha reunidos sob o nome Estrelas do Fogo – o próprio Valdomiro, Nha Idalina, Michel Montrond, entre outros – pela Alemanha, Áustria e Luxemburgo.

Para saber mais

Cabo Verde: O Ritual das Festas das Bandeiras da Ilha do Fogo, de José Maria Semedo e Maria R. Turano. Edição do Instituto de Investigação e do Património Cultural.

Ver e ouvir

Referências:

Barbosa, Gilda. “Regresso às tradições”. Terra Nova, julho de 2000.

Monteiro, Félix, “Bandeira: o senhor e o escravo divertem-se”. Claridade, maio 1958.

Nogueira, Gláucia. “Entrevista – José Maria Semedo: Fé na bandeira é autêntica”. A Semana, 23.06.2006.

Sousa, Henrique Teixeira de, “São João na ilha do Fogo”. Artiletra, 1998.

Sousa, Henrique Teixeira de, Sobrados, lojas e funcos. Contribuição para o estudo da evolução social da Ilha do Fogo”. Claridade, maio 1958.

Rosário, Fausto do. Comunicação pessoal, 2021. 

Agradecimentos a Fausto do Rosário pelo apoio à produção desta página.

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