‘Acordai’ na Ilha da Boa Vista
Por Júlio Rendall
Na Boa Vista, a tradição de cantar as “boas festas” de casa em casa mantém-se até hoje. Tchaina (Osvaldo Rocha) anualmente percorre as ruas da cidade de Sal Rei com o seu grupo de cantadores e cantadeiras. Tchaina é filho de Nhô Morice, que desde há muito tempo a entoava com o seu grupo na passagem do ano, com uma parte cantada até à meia-noite e outra depois da meia-noite.
Iniciava-se a peregrinação cantada, que percorria as casas de Sal-Rei, na noite do dia 31 de dezembro, depois de ao longo dos meses de novembro e dezembro a cantiga ter sido ensaiada pelo grupo.
“Era um grupo bem organizado, com um coro de moças e rapazes, que respondiam às iniciativas de Nhô Morice, o patrão dos cânticos. A caravana percorria toda a antiga vila, e terminavam as visitas muitas vezes já no dia 1 de Janeiro, já tardinha”, refere Simião dos Reis Ramos*, natural da ilha da Boa Vista, nascido em 1941, e que presenciou esta tradição em tempos passados. Entre os membros do grupo de Nhô Morice estavam: Tipó, Nhô Case, Gazome, Nha Moche, Ratão, Gust, Tchaina , Djidje, Antonim, Tino.
É possível que existam outras versões da mesma cantiga, mas fica aqui a letra da cantiga de Nho Morice:
Acordai de Nho Morice
Acordai quem está dormindo
Alto lá, quem la vem amanhã no mar
Alto lá, quem la vem amanhã no mar
Para vir ouvir uma missa nova
Para vir ouvir uma missa nova
sacramentada no céu e na terra.
Traca traca Maria Madalena,
Dona Mariana, quando ela queria morrer
Ela deixou seu divino testamento
Ela deixou seu divino testamento.
Que não podia ser confessada, näo ser confessada,
Nem pelo padre, nem pelo bispo, nem pelo arcebispo.
Ela deixou para dar as boas festas no tal dia,
Como dia de hoje. Boas festas, muitas felicidades.
II
Glorioso padre Santo António,
Que é um padre santo milagroso
Estando ele no pulpito a pregar,
Ali chegou o nosso padre Santo Roque,
dizendo ele que o seu pai esta na forca,
E ele pediu três Ave-Maria,
Para resgatar seu pai do pé da enforca.
Ali vem as três marias, ali andando de meia-noite pelo ar
Foi andando e foi gostando, e dar com ela ali em Roma,
na rua de amargura vestido no altar
Com um cálice de ouro nas mãos
Missa nova ele queria cantar,
dar bênção a Santíssima Trindade.
III
Quem tomar essa devoção, a todas as sextas-feiras de quaresma,
Estou cansado, estou estragado, de tanto remar neste mar de Cristo
De tanto remar neste mar de cristo, todo dia e toda a noite
Com Belchior, Gaspar e Baltasar, que eram tres homens
De bons afazeres, e trabalhar para alcançarem.
IV
Endo eu, ali no alto mar encontrei com a minha santa mãe
Oh mãe, oh mãe deita-me a benção,
Oh filho, abençoado sejais vós
E perguntou-me, oh filho por onde vais,
Oh mãe, vou para mundo,
Consolar os pecadores na companhia do anjo Säo Gabriel
V
Oh senhor e a senhora desta casa,
Viemos ali para dar as boas festas
No tal dia, como o dia de hoje,
Desejamos saber se a senhora é honrada
Para nos ofertar com oferta grandiosa,
Para nos ofertar uma oferta grandiosa,
E ali ao fim, ali ao fim para nós os dividirmos.
Boas festas e bons anos!
São José, a sagrada de Maria, foi para Belém,
Em busca de Jesus Cristo,
Veja lá como a senhora está contente e tão alegre,
Trazendo Jesus Cristo na sua entranha
Vai um viva para a senhora desta casa,
Na companhia de toda a família,
E para todos os filhos que estao ausentes.
Festas felizes!
* Recolha realizada por Júlio Rendall, a quem este projeto agradece pela colaboração na criação desta página.