A koladera, ou a alegria de não zombar
Gláucia Nogueira e Djoy Amado
O escritor português Manuel Ferreira, que ao longo da sua vida esteve tão ligado a Cabo Verde, e que tinha especial interesse na área musical, escreveu no seu livro A Aventura Crioula, cuja primeira edição é de 1967, que a koladera é “a alegria de zombar”. Este trecho do seu ensaio dedicado à cultura cabo-verdiana foi também publicado como artigo no jornal O Arquipélago (16.12.1968).
O título é mesmo esse: “A coladeira, ou a alegria de zombar”. No seu texto, Ferreira compara as características da morna e as da koladera, sintetizando que a primeira “reflete uma face do cabo-verdiano: a morabeza, o sonho, a nostalgia, o gosto dorido das coisas ou o sofrimento contido” e a outra revela a sua “mordacidade, a alegria de zombar, de criticar, a tendência para a mofa, o motejo, o riso descarado, a brincadeira alada, a irreverência desbocada”.
O autor certamente se referia às letras satíricas das koladeras dessa época, que em geral eram recheadas de críticas moralistas dirigidas ao comportamento das mulheres. Composições de Ti Goy (“Nutridinha”), Manuel d’ Novas (“Vra tchif”) e Frank Cavaquinho (“Estanhadinha”, “Holandeza”, “Quem bo é”) são alguns dos exemplos mais conhecidos.
Com o passar do tempo, contudo, esse padrão de koladera com letra criticando atitudes femininas não se manteve, embora até hoje por vezes seja indicado para caracterizar este género musical. E mesmo a caraterística da koladera como satírica não se mantém na produção de compositores de períodos posteriores, como se pode verificar pelos exemplos a seguir.
Se observarmos bem, as koladeras de modo geral têm temas variados, em que aquelas “alfinetadas” na mulher, da década de 1950/60, sequer aparecem. Vejamos alguns exemplos, por compositores, numa lista que pode se tornar gigantesca, se começarmos a observar a temática das letras:
- Alcides Spencer Brito (“Cena d’ ciúmes”)
- Djim Job (“Promessa E Conversa”; “Graça Santa Maria”, parceria com Kalu Monteiro)
- Djinho Barbosa (“Mindel Mind”, parceria com Kaká Barbosa);
- Grace Evora (“Tchiga Perto”)
- Jorge Humberto (“Pidrinha d’ Soncente”, “Moiabo un consola”, “Na nha’temusfera”, “Cende luz”)
- Jorge Neto (“Cretcheu”)
- Kalú Monteiro (“Nha Cizila”)
- Kino Kabral (“Criola”)
- Nhelas Spencer (“Ti Jom Poca”, “Poc li Dente É Tcheu”, “Malcustumode”)
- Paulino Vieira (“Prêce di um fidjo (Alo Cabo Verde)”, “Grande foque”)
- Roy Job (“Lua Cheia”)
- Toy Vieira (“Coragem irmon”; “Dança ma mi Criola”, “Sodade ca bo frontam”)
- Zé Carlos (“Na nha lado”, “Sofrimento”)
Há até algumas letras de koladeras que trazem uma crítica a determinados comportamentos masculinos face à mulher na conquista sexual. Por exemplo, “Não Nhu” (Glanzer Ramos/Djim Job) e “Amdjer ka Bitche” (Nhelas Spencer), embora nestes dois exemplos o pressuposto não deixe de ser o da moral patriarcal em que é suposto o comportamento da mulher ser o do recato e não o da liberdade sexual. Ainda assim, não é ela que está a ser criticada.
Refira-se ainda que com o aparecimento de mulheres a compor e a gravar as suas próprias koladeras, entre composições em outros géneros, essa característica tende também a ficar como marca dos tempos em que a koladera começou a ser gravada, e já é não válida para caracterizar o género musical como um todo. Teté Alhinho pode ser apontada como uma pioneira neste contexto, com a composição “Dia k’tchuba bem”, nos anos 1990 sendo o seu principal êxito, até o lançamento de “Bejo furtado”.
Muitas koladeras na verdade falam de:
Amor e relacionamentos humanos, como por exemplo:
“Cretcheu” (Jorge Neto); “Graça di tchiga” (Tito Paris); “Nov olhar”, entre outras de Jorge Humberto; “Na Nha Lado” e “Sofrimento” (Zé Carlos); “Coragem Irmon” (Toy Vieira)
Das saudades da terra:
“Sabe sabim” (Kalú Monteiro)
Das questões das migrações:
“Cartinha d’Holanda” e “Nha Cansera Ka Tem Medida”, de Pedro Rodrigues
Questões do mundo em que se vive, crítica social
“Apocalipse” (Manuel d’Novas); “Intelectual” (Luís Lima)
A questão racial
“Preto e mi” (Tito Paris)…
Os temas das koladeras vão variando conforme emergem questões ao longo do tempo nos contextos sociais onde os compositores vivem e resultam do cruzamento da sua observação da realidade com a sua capacidade de criação. O próprio humor, presente em muitas koladeras, de ontem e de hoje (“Encmenda d’ terra”, de Paley Spencer, por exemplo, ou “Malcustumode”, de Nhelas Spencer) não chega a ser também um padrão, podendo ou não estar presente.
Assim, pode-se concluir que, ao longo do tempo, diluiu-se o padrão esquemático morna-romântica/koladera-crítica, muitas vezes ainda apresentado para caracterizar as duas expressões musicais.
Ver também: Morna câ ê sô dor, nem só amor