Festival da Baía das Gatas

Por GN em

Texto baseado no artigo “25 anos no palco e no disco”, publicado na revista “KCultura” (2000, edição comemorativa dos 25 da independência de Cabo Verde).

Por Gláucia Nogueira

Em 1984 um grupo de jovens que frequentava a galeria Nho Djunga – espaço cultural que na época reunia no Mindelo pessoas interessadas em música e cultura – idealizou algo cuja proposta era “criar um palco para toda a música e os músicos de Cabo Verde”, recorda Vlú.[1] Vlu, Vasco Martins, Dany Mariano, Voginha e Tey Santos são alguns desses nomes.

“Vasco, recém-chegado da França, tinha formado um grupo na galeria Nho Djunga, ponto de encontro de jovens para tocar e ouvir música diferente”, refere Dany Mariano, que ao inscrever-se no Todo o Mundo Canta convidara Voginha para o acompanhar. Este, por sua vez, convidou Vasco. “Participamos no concurso e ficamos em último lugar, pois fizemos uma coisa totalmente diferente, introduzimos uma experiência de jazz na música de Cabo Verde”, afirma Dany Mariano[2]. Foi a primeira actuação pública do grupo Gota d´Aga, que viria a ser o núcleo de um movimento musical em reacção ao que Vlú descreve como “um pensamento conservador que decretou morna e coladeira como música nacional”. “Outras coisas não tinham espaço, não eram convidadas para nada oficial. É por isso que acaba surgindo o festival da Baía das Gatas”, afirma.

Cartaz da primeira edição do Festival da Baía das Gatas. Imagem cedida por Dany Mariano

Reunindo cerca de 50 participantes e com um equipamento de 150 watts de potência, a primeira edição do festival atraiu público das ilhas do Sal e Santo Antão. Cumprindo desde já a vocação eclética que caracterizará esses eventos, há espaço para todos os géneros: morna, coladeira, funk, funaná, reggae, jazz e rock, com grupos elétricos e acústicos a alternarem-se.

Não faltarão problemas técnicos a determinar grandes atrasos – o que ao longo dos anos acontecerá com frequência –, mas “há outras formas de queimar o tempo”, como escreve um cronista presente: “um banho no mar, uns copos, nesta ou naquela barraca, uns dedos de conversa…”[3]. Assim começa o festival. No ano seguinte, já serão 200 músicos a passar pelo palco da Baía das Gatas.

A sua contínua expansão, com críticas, exigência de melhoras e controvérsias pelo meio, leva a que em 1987 – ano em que a realização do festival chega a ser posta em dúvida mas que acaba por registar um público de 25 mil pessoas, numa ilha com 40 mil habitantes – se questione, pelas páginas do jornal Voz di Povo: “Para quando o término da fase dita experimental?”[4].

No ano seguinte, “tudo parece indicar que o Festival da Baía das Gatas cresceu mais do que os seus responsáveis esperavam” [5], lê-se neste jornal. “No início era totalmente independente”, diz Vlú. “Com o aumento das despesas, tiveram que pedir apoio à Câmara Municipal. Começaram a convidar artistas de fora para intercâmbio, nomes com uma certa projeção para chamar a atenção. Com o aumento dos custos, o festival saiu das mãos do grupo inicial”, afirma.

Em 1992, a organização chama a atenção para o potencial turístico do festival: “Esse responsável apelou às autoridades que gerem o turismo em Cabo Verde, para que dêem uma atenção diferente ao festival da Baía das Gatas, pois, segundo ele, como promoção, de Cabo Verde e em termos de identidade cultural, o festival é extremamente importante”.[6]

Entre altos e baixos, completa-se uma década de música na Baía das Gatas com os problemas financeiros já crónicos. Mesmo assim, um equipamento de 40 mil watts é importado dos Estados Unidos. Cinco mil toneladas de Clep´s [cerveja a pressão lançada na época no mercado cabo-verdiano] são consumidas à beira mar no fim-de-semana de 20/21 de agosto de 1994.

“De qualquer das formas, Baía das Gatas continua internacionalizando-se. Estrangeiros procedentes de vários países estiveram presentes e órgãos de comunicação social também”, revela A Semana[7].

No ano seguinte, devido à epidemia de cólera, não há atividades, mas 1996 levará cerca de 40 mil pessoas à baía e pela primeira vez o festival, apoiado pela cooperação portuguesa[8], será transmitido em direto para todo o arquipélago e para o estrangeiro através da emissora estatal (então denominada Televisão Nacional de Cabo Verde – TNCV), e das emissoras portuguesas de rádio, RDP, e televisão, RTP.

O festival é então assumido como evento de grande potencial turístico. O pelouro do Turismo da Câmara Municipal de São Vicente passa a presidir a organização e abre espaço para outras manifestações além dos espetáculos habituais, como exposições e exibições ligadas ao Carnaval e ao Kolá Sanjon, além de um concurso de misses.

Em 1997, há mais polémica: divergências entre a organização e a Radiotelevisão de Cabo Verde (RTC), acusada na altura de “boicote”[9],  impediram a transmissão pela RTP-Internacional, comprometendo patrocínios, situação que veio somar-se às habituais dificuldades financeiras. Como pano de fundo, o confronto entre forças políticas. “É tempo das instituições do Estado e o Governo entenderem que os choques institucionais entre o Poder Local e Central, que são uma realidade neste momento, são questões da política que não devem ser transplantadas para eventos culturais e turísticos, que beneficiam a todos nós”, afirmava na altura o presidente da Comissão Organizadora, Silvestre Évora[10].      

Chega-se a 1999 com a intenção de profissionalizar o festival, que passa a contar com 50 mil watts de som e três palcos. A contratação de uma empresa portuguesa especializada nesse tipo de evento, contudo, acaba por frustrar as expectativas criadas em torno da edição intitulada “Baía Milénio”.

“Para muitos, foi como se se tratasse da repetição de uma das edições anteriores, com os habituais ingredientes: atrasos na programação, longas horas de espera, mudança de artistas de última hora, com os mais azarados a subirem ao palco a horas mortas, etc.”[11] Mais uma vez há problemas com a transmissão televisiva, nesta ocasião do espetáculo de Cesária Évora, por desentendimentos entre o empresário da artista, a RTP África e a RTC-TV.   

Êxito ou “barraca”? Eis a questão que desde a primeira edição acompanha o festival da Baía das Gatas que, aos solavancos e sempre a gerar polémica, tornou-se um ponto de encontro incontornável entre artistas cabo-verdianos e não só, e o seu público, cabo-verdiano e não só, já que os turistas e emigrantes constituem uma parte importante do público. Algo que começou como “uma brincadeira séria”, acabou por ser  “mais um produto turístico do que um evento cultural, ainda que seja um ato de cultura”, nas palavras de Dany Mariano, que em 2006 publicou um artigo contando a sua versão sobre a criação do festival.

30 anos depois

Nos 30 anos do festival, Vasco Martins, publicou Primeiro Festival da Baía das Gatas, 18/19 de Agosto de 1984 – Breve Historial, procurando mostrar o contexto que deu origem ao evento que costuma ser chamado de o “Woodstock cabo-verdiano”, em alusão ao festival realizado em agosto de 1969, numa fazenda no estado de Nova Iorque (EUA), atraindo cerca de 400 mil pessoas e que foi um marco na cultura pop desde então.

Um filme sobre o festival fora exibido em junho daquele ano no cinema Eden Park e depois da sessão é claro que no grupo de amigos que se encontrava para ouvir, tocar e falar de música “as ideias transbordavam”, como recorda Vasco Martins. Daí a pensar-se num festival em São Vicente, foi um passo. Vários locais dentro da cidade do Mindelo foram apontados como possibilidades.

“Quando fomos à Laginha algo aconteceu: tivemos a consciência que estávamos na cidade! A praia era pequena para os nossos sonhos. Queríamos que as pessoas saíssem da cidade, queríamos ar fresco, queríamos um espaço largo. E aí sim, lembro-me, foi o Kukss que disse: Baía das Gatas! Concordamos, mas o Daniel Medina, homem mais prático, contrapôs: já seria um problema organizar um Festival na Laginha, quanto mais na Baía! Tinha razão. Mas tínhamos a energia da juventude que ‘dá asas’.”

Vasco Martins, em Primeiro Festival da Baía das Gatas, 18/19 de Agosto de 1984 – Breve Historial (2014)

Na época, relata Martins, a Juventude Africana Amilcar Cabral de Cabo Verde (JAAC-CV) era a entidade organizadora da maior parte dos eventos culturais. Por exemplo, o Todo o Munda Canta, que existia desde 1982. Mas o grupo de mindelense não estava interessado em concursos, mas sim num evento “onde muitos estilos de música tivessem representação”, desde a cabo-verdiana tradicional, o jazz e mesmo a música clássica, refere o texto. E assim foi. “Éramos um tanto distanciados da JAAC-CV e estávamos cansados que todos os eventos emanassem de uma juventude politizada ‘partidariamente’, que fizeram no entanto o que podiam fazer na contexto da época”, escreve o músico.

Apesar da desconfiança e descrédito com que a iniciativa foi recebida por muita gente, num primeiro momento, o festival aconteceu, baseado em muita improvisação, contando com o apoio das Forças Armadas para várias questões de logísitica, de um reduzido grupo de empresas e de vários voluntários. “Não podia ser de outra maneira, dado que não tínhamos meios, nem experiência, nem tão pouco a disponibilidade de material necessário para o ‘desenrascanso’”, recorda Vasco Martins, concluindo: “Trinta anos depois, ei-lo ainda vivo, encantando todas as gerações.”.

Para saber mais

A Verdadeira História do 1º Festival da Baía das Gatas, artigo de Dany Mariano publicado em agosto de 2006 no jornal online O Liberal.

Primeiro Festival da Baía das Gatas, 18/19 de Agosto de 1984 – Breve Historial, brochura da autoria de Vasco Martins, editada pela Câmara Municipal de São Vicente (2014).

Festival da Baía das Gatas pós 2000

Obs.: Como o artigo em que se baseia este texto foi escrito e publicado no ano 2000, não estão aqui incluídas informações posteriores a essa data. Contudo, a história do festival continua. Cabo Verde & a Música – Museu Virtual aceita colaborações. Tem dados recentes sobre este tema e quer colaborar? Envie a sua proposta de texto para contato@caboverdeamusica.online.


Referências:

[1] Vlu, entrevista à autora em São Vicente, junho de 1998.

[2] Dany Mariano, entrevista à autora em São Vicente, junho de 1998.

[3] Tolentino, Abílio, Festival da Baía das Gatas: Um sucesso ou uma “barraca”?, Voz di Povo, 25.08.1984.

[4] Cardoso, F. Gomes, Festival (de música) da Baía das Gatas – Um sucesso garantido, Voz di Povo, 29.08.1987.

[5] Lopes, José Vicente, Baía das Gatas: uma ideia que pode dar certo, Voz di Povo, 03.09.1988.

[6] Balanço foi positivo, Voz di Povo, 25.08.1992. Citação de entrevista de António Cardoso Santos, representante da organização, à Cabopress.

[7] Tabanka Djaz, Gil & The Perfects e os Tubarões – O trio que mexeu Baía das Gatas, A Semana, 22.08.1994.

[8] Festival da Baía das Gatas com forte segurança, Novo Jornal Cabo Verde, 24.08.1996.

[9] Comissão organizadora acusa…, Novo Jornal Cabo Verde, Praia, 23.08.1997; Bettencourt, Fátima, País real, país virtual, Novo Jornal Cabo Verde, 23.08.1997.

[10] Silvestre Évora – Cabo Verde ganha com o Festival da Baía, Suplemento Baía’97, A Semana, 15.08.1997.

[11] Baía das Gatas 99 – A decepção do milénio, O Cidadão, 03.09.1999.

CURIOSIDADEO nome do festival e da praia onde se realiza: A Baía das Gatas é uma baía natural que fica a cerca de dez quilómetros a leste da cidade do Mindelo. O seu nome deriva da abundância nas suas águas de uma espécie de tubarão denominado tubarão-gata. Mais informações aqui.