Os cabo-verdianos e o jazz
Por Gláucia Nogueira
Embora não seja o tipo de música mais difundida em Cabo Verde, o jazz sempre teve entusiastas entre os cabo-verdianos. E entre os músicos, embora não muito numerosos, teve ao longo do tempo vários praticantes.
Como uma espécie de “chapéu” sob o qual muitas coisas diferentes se abrigam, o jazz é mais uma forma de estar na música do que um estilo musical, baseando-se, em linhas gerais, na liberdade criativa e na improvisação. Esta característica faz com que seja bastante heterogênea esta comunidade de músicos. Além disso, ao longo do tempo foram muitas as mudanças e os novos estilos e subgéneros que se formaram neste domínio.
Nos Estados Unidos, berço do jazz e onde uma comunidade cabo-verdiana já existia na região da Nova Inglaterra cerca de um século antes desse tipo de música aparecer, as atividades musicais no âmbito dessa comunidade estão bem documentadas. Grupos e personagens desde o início do século XX têm as suas histórias contadas aqui.
Os músicos cabo-verdianos – ou descendentes de cabo-verdianos – concentrados sobretudo em Massachusetts e Rhode Island viram o jazz nascer, foram impregnados por aqueles novos sons, aderiram à novidade, em alguns momentos possivelmente deixando de lado a música das suas origens. Em outros momentos interpretaram a música de Cabo Verde incorporando nas suas performances influências que recebiam do estilo de tocar que então desabrochava e contagiava o público nos Estados Unidos e depois pelo mundo fora.
Alguns desses personagens tiveram trajetórias que extrapolaram os limites da comunidade cabo-verdiana e se tornaram célebres no contexto do jazz em geral. É o caso por exemplo de Horace Silver, um dos expoentes do bebop, de Paul Gonsalves, saxofonista que durante 25 anos foi o solista da banda de Duke Ellington e do trompetista Phill Barbosa, que terá, em finais da década de 1950, influenciado o então jovem pianista Chick Corea a abrir-se para os sons latinos. Paul Pena, Joe Livramento, Jimmy Lomba e George Azevedo são outros exemplos de personagens ligados ao jazz na comunidade cabo-verdiana na Nova Inglaterra.
Do outro lado do Atlântico, no País de Gales, na pequena comunidade de cabo-verdianos radicada em Cardiff, cuja origem remonta ao início do século XX, alguns músicos também se dedicaram ao jazz. São nomes que não ficaram conhecidos em Cabo Verde, mas o registo da sua trajetória musical ficou na imprensa e na sua discografia. Hoje, graças à Internet, podemos facilmente acessar a sua obra e conhecer a sua história.
É o caso dos irmãos Deniz, Frank, Laurie e Joe, nascidos no País de Gales e filhos de um marinheiro de São Vicente que emigrou para Cardiff em finais do século XIX. Os três irmãos iniciaram as suas carreiras como músicos profissionais na década de 1930 e estiveram em destaque no cenário musical britânico na era do swing, sendo personalidades negras de destaque naquele período.
O jazz em Cabo Verde
Se os músicos da diáspora cabo-verdiana estavam mais próximos dos principais centros onde se cultivava e se desenvolvia o jazz, isso não quer dizer que as ilhas não recebessem os ecos dessa dinâmica cultural. A denominação jazz band pode ser encontrada em vários registos na imprensa cabo-verdiana na década de 1930. Tal como nos primórdios do jazz nos Estados Unidos, eram bandas que atuavam em espaços de dança.
Pelos anos 1960, Djosa Marques, pianista e baterista, membro do grupo Ritmos Cabo-Verdianos, é um nome que naquele momento, interpretando mornas e coladeiras com influências de jazz, mostrava a sua sintonia com esta linguagem. Tocava, blues e baladas, tendo sido um grande admirador do músico norte-americano Errol Garner, segundo o jornalista e baterista Carlos Gonçalves, em declarações a Cabo Verde & a Música – Museu Virtual, que recorda ter atuado com Djosa Marques em 1971, em espectáculos no Eden Park e mais tarde, em 1983, na Galeria Nhô Djunga.
Em fins da década de 1980, registe-se, na Praia, o surgimento do grupo Oásis, integrando Zequinha Magra (guitarra), Yah-Yass (baixo), Carlitos (sax), Gulba (trompete) e Duka (teclas) com uma proposta jazzística. Durou pouco tempo. Outro grupo que se pode inserir neste contexto é o Cape Verdean Jazz Band, também na Praia e também efémero, formado por Ney Bettencour (Ney di Belinha, na guitarra), Djinho Barbosa (teclas), Orlando Pantera (baixo), Raul Ribeiro (Houss, bateria), Casimiro Tavares (então regente da Banda Militar, no trombone e trompete) e Samuel no sax tenor.
Pode-se também identificar uma inclinação para o jazz em alguns músicos que nessa virada do milénio começavam a se destacar no cenário musical da Praia, casos de Kisó Oliveira e Angelo Andrade, membros do Arkora, que integrava também Houss e o brasileiro Ricardo de Deus. Kisó veio a participar, depois de se transferir para São Vicente, no Ku4rtet, com Khaly, Bruno e Ivan.
Também em São Vicente, refira-se o grupo Olinôs, liderado pelo alemão Swagato, que viveu os seus últimos anos no Mindelo, e por cuja formação passaram, entre outros, Kisó Oliveira, Hernani Almeida, Zé Paris, Micau Chantre, Bau e Humberto Ramos. Este último, no seu percurso académico, dedicou-se ao jazz em várias das escolas de música que frequentou em Portugal e mesmo residindo neste país, participou como compositor, produtor e pianista, além de responsabilizar-se pela gravação, mistura e mastering, do CD Sabura, que o Olinôs lançou em 2010.
Entre artistas atuando individualmente, há a destacar Voginha, com o seu até agora único disco, Felicidade (2002), em que mostra a sua ligação ao jazz, gravando inclusive o tema “So What”, um clássico do repertório de Miles Davis. Também de São Vicente e com trabalhos a solo refiram-se ainda estes dois guitarristas: Hernani Almeida e Vamar Martins. Hernani tem dois discos instrumentais a solo, Afronamin (2008) e Caalma (2010). Vamar, depois de formar em França, o Mix Quartet, grupo que durante algum tempo só interpretou composições de Horace Silver, veio a gravar já depois de ter voltado a Cabo Verde o álbum Inkrustod, tocando música cabo-verdiana com um pé no jazz.
Outro guitarrista que enveredou pelo jazz é Carlos Mendes (Carlos Modesto), da Praia, residente no Porto, Portugal, onde é professor universitário em disciplinas relacionadas com o jazz e participa num quarteto, com o qual gravou o álbum Estórias.
A parceria musical de Amândio Cabral e o pianista norte-americano Larry Dunlap é outro item desta panorâmica sobre os cabo-verdianos e o jazz. Dunlap gravou vários discos especificamente com composições de Cabral e acompanhou Gabriela Mendes na gravação de um disco com interpretações jazzy de temas deste compositor.
Do início dos anos 2000 em diante, um nome destaca-se pela linguagem jazzística: Carmen Sousa. Já ao começar a sua carreira ela recebia da crítica europeia comparações com divas do jazz, pelo estilo do seu canto. Refira-se que Carmen Souza compôs uma letra para “Song to my father”, de Horace Silver, a contar a história do seu próprio pai, e o seu álbum The Silver Messengers é um tributo a este músico norte-americano de origem cabo-verdiana. Criou também letra para “My favourites things”de John Coltrane. Noutra vertente, gravou num sotaque jazzy clássicos cabo-verdianos como “Seis one na Tarrafal” e “Sodade”.
É de referir ainda a cantora Xiomara Barbosa, residente nos Estados Unidos, que durante algum tempo atuou neste país com músicos de jazz da Berklee College of Music, em Boston, e Candida Rose, nascida numa família cabo-verdiana em New Bedford, que entre outras atividades musicais tem um grupo denominado CaboJazz Ensemble, em que mescla a tradição musical cabo-verdiana ao jazz, evidenciando as suas vivências musicais relacionadas aos dois países do seu pertencimento.
Os festivais de jazz
Fesquintal de Jazz – 2002. sob a coordenação de Mário Lúcio e Teté Alhinho, na época membros do Simentera, este evento surge inspirado no ecletismo do jazz, reunindo um leque de artistas que inclui desde representantes da música tradicional cabo-verdiana, como os violinistas Nho Djonzinho ALves e Nho Raul de Pina, ou nomes do funaná de raiz, como Sema Lopi e Codé di Dona, a jovens talentos que despontavam naquele momento, como o grupo Djingo e a cantora Paulinha. Youssou N’Dour foi o destaque internacional. O violinista alemão Martin Schaefer e o saxofonista português Carlos Martins foram outros personagens deste evento.
Festijazz – 2003. No ano seguinte, um grupo de cidadãos na cidade da Praia quis que o festival continuasse, mas os organizadores do Fesquintal de Jazz se desinteressaram, realizando-se então um evento com outro nome, que como o anterior teve uma única edição. Este, porém, desdobrou-se entre a Praia e o Mindelo. O Festijazz homenageou Luís Morais, falecido meses antes, com um espetáculo que reuniu vários músicos da área dos sopros. O festival foi promovido pelo Promex, na época dirigido por Georgina de Melo.
Kriol Jazz Festival (KJF) – desde 2009. Surgiu a partir de uma iniciativa de Djô da Silva, proprietário da Lusafrica e da Harmonia, com a parceria da Câmara Municipal da Praia e da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV). O Kriol Jazz Festival realiza-se anualmente, no mês de abril, na chamada Pracinha da Escola Grande (Praça Luís de Camões oficialmente). Nas primeiras edições do evento era aí que ficava a reitoria da universidade pública cabo-verdiana. O KJF já foi apontado por revistas da especialidade entre os melhores festivais de jazz do mundo. Sempre pautando-se pela ideia de jazz como uma prática de trocas e misturas, em suma, um exemplo de crioulidade. Saiba mais: www.krioljazzfestival.com/
Mindel Summer Jazz – desde 2012. O embrião deste festival é o Jazzy Bird Bar-Pub, local onde sempre foram habituais noites de jazz. A JBird Productions vem daí, e começou a realizar o evento em 2012. Ao longo das suas edições, vem prestando tributo a músicos ligados à música instrumental, como Teck Duarte, Luís Morais e Horace Silver, mas também personagens como B.Léza, Chico Serra e Biús já foram homenageados. Ocupou inicialmente a Torre de Belém, na cidade do Mindelo, mas com o passar dos anos “transbordou” para outros espaços da cidade, como a praça entre o Liceu Bedje (antigo Liceu Gil Eanes) e o palácio do governo, a Escola Municipal de Música, o restaurante Casa da Morna, o pontão da marina e o Centro Cultural do Mindelo. O festival acontece sempre no mês de agosto. Para saber mais, clique aqui.
Esta é uma
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