Sinboa, cimboa, cimbó – II

Por GN em

Uma cimboa em dez lições

Texto e fotos: Gláucia Nogueira

Texto produzido originalmente para A Revista, suplemento do jornal A Semana, setembro de 2006

“Crónica de uma morte anunciada” podia ser, em outros tempos, um título para a história da cimboa. Há 30 anos, este instrumento africano feito de cabaça e uma só corda era visto em Cabo Verde como peça de museu, prevendo-se o seu desaparecimento. Hoje, ganha vida e é um símbolo de resistência.

Não é fácil fazer uma cimboa. Dá trabalho reunir os materiais certos e alguns deles são difíceis de encontrar em Santiago, único local de Cabo Verde onde a cimboa ainda resiste, embora se saiba que existiu outrora em outras ilhas. E mesmo em Santiago ela quase chegou a desaparecer. Mas o seu destino está a mudar.   

Um Projecto de Salvaguarda da Memória da Cimboa está em curso há alguns meses e engloba o registo audiovisual de entrevistas com pessoas ligadas à música, à investigação cultural e às tradições cabo-verdianas; a realização de ateliers de construção e de aprendizagem musical do instrumento, também registados em áudio e vídeo; e, ainda, a declaração de uma pessoa como património imaterial de Cabo Verde. 

Nho Mano Mendi, a iniciar a construção de uma sinboa.

Aqui entra a figura de Nho Mano Mendi (Pedro Mendes Sanches Robalo),  camponês de Ribeirão Chiqueiro, a dez quilómetros da Praia, que em 2007 completa 80 anos e é apontado como o único e último construtor e tocador de cimboa.

Dentro de algum tempo, poderá já não ser assim, pois com o evoluir deste projecto – do historiador Charles Akibodé, do Instituto de Investigação e do Património Culturais (IIPC) – já apareceram outros dados. Por exemplo, que Mano Mendi tem um neto de 16 anos que se interessa pelo assunto e até já foi à ilha do Sal mostrar a cimboa no Festival da Juventude. O médico dentista Olímpio Varela, que aprendeu a tocá-la em criança e nunca mais pegou numa, já se revelou capaz de, mais de 50 anos depois, solar mornas e coladeiras com à vontade e mestria.

Por sua vez, Nho Eugénio de Mato Brasil – que diz ter construído a cimboa que serviu de modelo para a ilustração da nota de 100 escudos emitida a 20 de Janeiro de 1977 pelo Banco de Cabo Verde (BCV), criado havia poucos meses – deixou o instrumento de lado há uns bons anos, desanimado com o facto de ele ser tão pouco valorizado. Agora, contudo, está pronto a ministrar um atelier de fabricação do instrumento, para transmitir as técnicas de que é detentor.

A sobrevivência da cimboa tem mais alguns aliados, como o capitão Pascoal (Domingos da Ressurreição Fernandes), das Forças Armadas, animador de muitas noites musicais em Santiago, e o presidente do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), Mário Lima. Ambos de S. Domingos, iniciados na música bem jovens pelo mestre Ano Nobu, juntaram-se no ano passado ao responsável pelo Centro da Juventude daquele município, Joaquim Leal, para promover um atelier de construção de cimboas que teve a participação de cerca de 20 jovens, sob a orientação de Mano Mendi.

Em Agosto último realizou-se em Ribeirão Chiqueiro um novo atelier, este promovido pelo IIPC, durante o qual Mano Mendi transmitiu o seu saber a quatro jovens da localidade, assessorado por Pascoal Fernandes, que já participara do atelier anterior. A iniciativa terminou em festa, com direito a uma actuação de Ntoni Denti d´Oru e suas batucadeiras e, claro, com Mano Mendi a solar a sua cimboa. Denti d´Oru, recorde-se, foi quem levou Mano Mendi a gravar, acompanhando-o no seu primeiro CD, editado em França em 1998.

Os quatro aprendizes – Irlando, o neto de Mano Mendi, José Carlos, Adilson e José Ângelo – concluíram a formação com planos de fundar uma oficina e tentar cultivar bulis para garantir a matéria-prima básica, hoje em dia rara de encontrar em Santiago.

O atelier durou dez dias e resultou na construção de uma dezena de cimboas. A Revista, mostra agora o passo-a-passo que transforma matérias-primas de origem animal e vegetal numa peça que, tal como o batuque e a tabanca, é um símbolo da resistência das tradições populares de Santiago contra o esquecimento e, ao mesmo tempo, um ícone do património imaterial de Cabo Verde.

1. A pele. Precisa de cerca de três dias de preparação, e por isso é o primeiro passo. Encontrar pele de cabra na Praia não é fácil. É preciso encomendar às pessoas que fazem o abate, pois caso contrário ela vai parar imediatamente ao lixo. O que permite concluir que as técnicas do curtume já praticamente não existem – e pensar que Cabo Verde exportava peles no passado… Os animais não devem ser nem muito bebés nem velhos: “Xubarra ou buréfu”, explicita Mano Mendi. Ou seja, adultos jovens.

2. A depilação. As peles são colocadas dentro de uma bolsa plástica que é fechada com nós e colocada em local inacessível – aos cães, principalmente. O objectivo é que o processo de decomposição, que o calor no interior do saco vai acelerar, solte os pêlos do couro. Três dias depois, quando a bolsa é aberta, é preciso ter estômago para suportar o cheiro, mas os pêlos desprendem-se facilmente. A nota de humor é dada por um dos aprendizes, diante das caretas dos companheiros: “Isto é como a medicina; não se pode ter nojo do paciente…” Depois de depilada e lavada com água apenas, sem qualquer produto químico, a pele é posta a secar ao sol.

3. Madeiras. Na zona rural de S. Domingos encontram-se as espécies vegetais utilizadas na fabricação da cimboa. Mas é preciso saber identificá-las. Para o braço do instrumento, usa-se um galho de pé de pinha, “colhido de preferência na época da lua minguante, para que depois de seca a madeira não rache”, explica Mano Mendi. O braço é maciço, não há emenda, portanto será necessário serrar um ramo que seja suficiente para fazer pelo menos um braço completo. Para o arco: ramo de barnélu (imagem ao lado), um arbusto que abunda naquela região. A chave para afinação da corda pode ser feita com um pequeno pedaço de mogno ou outra madeira dura. Há ainda os pregos que fixam a pele, feitos com varetas de carriço.

4. Esculpir. Tanto a madeira de pinha como o barnélu são trabalhados ainda verdes, por serem mais flexíveis nesta altura. Já o carriço é cortado em varetas, para ir secando até chegar o momento de usá-lo.

Transformar um galho de árvore num braço de cimboa exige uma faca bem afiada, um pouco de força mas, sobretudo, habilidade para lhe dar a forma que se pretende.

Na imagem ao lado, Nho Mano Mendi trabalha no ramo de pinha.

5. O arco. Depois de se retirar a casca do ramo de barnélu, este é curvado e amarrado com um cordão, o que lhe dará a forma. Depois, o cordão será substituído pela corda feita com fios de rabo-de-cavalo, introduzida numa fenda que se faz em cada extremidade do arco e amarrada com barbante.

6. Buli – cortar e furar. O buli (cabaça), que será a caixa de ressonância do instrumento, deve ter à volta de 15 cm de diâmetro. É cortado com serra ou faca, de forma a abrir uma boca que será revestida com a pele. Além disso, fazem-se três furos no buli: dois onde ficará encaixada a haste inferior do braço e um por onde sairá o som.    

7. Montar a pele. Ao redor da abertura do buli fazem-se pequenos orifícios com intervalos regulares, com um furador manual. A pele deve estar molhada ao ser esticada sobre a abertura, e as varetas de carriço que entretanto já foram cortadas com a ponta em cunha são introduzidas nesses furos, através da pele e fixando-a ao buli. O excedente da vareta é eliminado.

8. Montar o braço. Introduz-se a parte inferior do braço, que no total tem cerca de 60 centímetros de comprimento e cerca de três de largura, nos dois buracos feitos no buli, de forma que este é atravessado pela haste, que sai pelo segundo buraco. A forma e espessura do braço devem coincidir com as dos orifícios.

9. A corda. A corda da cimboa, bem como a do arco, é constituída por cerca de 50/60 fios de rabo de cavalo. Uma particularidade é o facto de que estes fios devem ser escuros – pretos ou castanhos, pois o fio branco parece não dar bom som. Dificuldades de se obter este material em Cabo Verde ditaram pedidos de fornecimento a pessoas no Brasil e no Uruguai, onde Charles Akibodé tinha divulgado o seu projecto, durante um congresso internacional, há meses. Vários quilos foram enviados, pelo que agora o IIPC dispõe de um bom stock. A corda fica presa numa fenda na chave de afinação. Na outra extremidade, passa por cima de um cavalete (uma pequena peça cortada do buli e colocada sobre a pele), ficando bem esticada ao ser amarrada com barbante na ponta do braço que sai do buli.  

10. Afinar e tocar. No fim do atelier, Mano Mendi experimentou as cimboas construídas e também uma que Denti d´Oru tinha em casa, avariada, que foi reparada. E tocou no encerramento, preparando-se agora para a próxima fase do projecto: ensinar a tocar. 

Mano, tesouro humano?

Entre os objectivos do Projecto de Salvaguarda da Memória da Cimboa, está a declaração de Nho Mano Mendi como “património” de Cabo Verde, por ser detentor de um saber tradicional único. Se isso acontecer, será a primeira vez que o país atribui essa condição a uma pessoa. Ideia nova em Cabo Verde, esta prática existe desde 1950, tendo sido o Japão o pioneiro.  

“Uma pessoa pode ser considerada como Património Vivo ou Tesouro Humano Vivo (em inglês Living Human Treasure) de um espaço – aldeia, concelho, cidade, país – quando mostrou e desenvolveu um conhecimento ou uma habilidade particular reconhecida e/ou que fez conhecer o espaço pelo seu talento”, explica Charles Akibodé, justificando a aposta do seu projecto: “Mano Mendi, pelo seu talento, tirou do anonimato a aldeia de Ribeirão Chiqueiro, e é o único tocador em Cabo Verde inteiro de um instrumento ancestral e de um estilo musical que sobreviveu graças à sua abnegação.”

Em África, a Nigéria, o Benim e o Burkina Faso estão entre os países que já adoptaram medidas que valorizam os seus mestres. No Senegal, há a referir Joseph NDiaye, guia da Maison des Esclaves, em Gorée. Trata-se de um caso específico, mas que revela que os critérios podem ser definidos pelos próprios países, por aquilo que julgam relevante.

Segundo a definição da Unesco, o Património Cultural Imaterial (PCI) é constituído pelas práticas, representações, expressões, conhecimentos e habilidades, instrumentos, objectos, artefactos – e espaços culturais que lhe são ligados – que as comunidades, grupos e indivíduos reconhecem e aceitam como fazendo parte do seu património. Ou seja, da língua à medicina tradicional e à culinária, passando pelos rituais, crenças, jogos e artes, nas suas várias expressões.

A Unesco considera que uma das formas mais eficazes de realizar a salvaguarda durável do PCI é cuidar para que aqueles que o encarnam continuem a praticar os seus conhecimento e os transmitam às gerações seguintes. A propósito, Cabo Verde ainda não faz parte dos países que ratificaram a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, adoptada em Outubro de 2003. GN

Categorias: Instrumentos

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