Talaia baxu

Por GN em

Por Lívio Lopes

Da encosta norte do majestoso vulcão do Fogo, na localidade de Atalaia, nasceu – nos meados do século XIX – o género e ritmo musical talaia baxu, típico da ilha, como que a lamentar as desgraças e infortúnios resultantes das erupções vulcânicas que só o apelo ao mar fazia amenizar a dor e o sofrimento de quem perde quase tudo de uma assentada. Daí resultaram o refrão uai, uai…; Óoh mar, óoh mar, óoh mar! entre outras.

Nesta linha rítmica lenta nasceu este género musical, “primo-irmão” da koladera, (não trabessado) cujos desenvolvimentos com os Mendes Brothers (Ramiro e João) reconduziram talaia baxu à sua originalidade, particularmente nas composições “Otílio/Otília”, “Cor di Rosa” ou “Passadinha”, cujos trechos, a seguir, retomaram o ritmo mais lento que a koladera e uma lírica mais moderna, telúrica e nativista, quais sejam:

(…) Uai, uai, uai, Tudo kusa ê riba min Uai, uai, uai, Tudo kusa só na papai…

Ou,

(,,,) Wai Cor de Rosa Nos distino e Djarfogu Du ka ta trocal Ku nada des mundo

Ou ainda, em “Passadinha”,

(…)

Oh mansan di Nha Léna
Kumó nha bida birâ
Kumó mar di maré
Óra baxu óra mas artu

Oh mansan di Nha Léna
Kumó nha bida al fikâ
Kumó bida koitadu
Óra medradu, óra engenhadu

A temática que geralmente resulta deste ritmo de talaia baxu é forte, como se pode depreender das letras que se seguem:

Mofino baca di poca brigona ki nega faba pâ cumê fijon, só pamó fijon tem pele más grós

… Djan tem raiba, djan tem raiba forte, mi sim pégá mundo n tá dá cuel na txon.

Ou estas letras satíricas à mulher, um pouco arriscadas nos dias de hoje:

Sê pan passa noti ku mudjê mofina, má nkrê rola na pedra ku kem kin krê txêu

Bó ê porca di 2º grau ki nega santo pâ cuscuz torrado

São letras sarcásticas, claramente emprestadas ao género karkutissan e rafodjo – das cantadêras populares das festas da bandeira do Fogo – cujos conteúdos retratam a vivência hostil ao negro, mulato e “deserdados” dos embarcadiços “maricanos”, cantadas por gente do povo para contrariar os abusos coloniais ou arrogância dos emigrantes que chegam.

O sarcasmo sendo uma figura de linguagem utilizada para afrontar ou ofender alguém, ou um grupo, é de uma maneira geral, utilizado para ridicularizar o outro, utilizando uma linguagem agressiva. Nestes termos vários temas compostos em ritmo talaia baxu refletem, também, a narrativa do quotidiano, em forma espontânea e repentista, sarcásticas e ofensivas ou, até, por outro lado de enaltecimento ao outro e de lamento das amarguras e mágoas da perda de um kretxêu (amor), naufrágio no mar (ê mar ki lebâ Michel), entre outras.

Armand de Montrond. Fonte: família Montrond

A influência do violino francês de Armand Montrond que até sua morte, em junho de 1900, viveu entre Chã das Caldeiras, Txada Mariz e Atalaia, pode ter contribuído para o surgimento deste ritmo melancólico resultante deste culto conde e eremita, fugido de França por razões que se consideram políticas, mas cujos níveis culturais e de conhecimentos “encheram” e influenciaram a vida de todos na ilha.

Nesta linha de influência surgiram vários seguidores, quer no violino, quer na viola de 12 cordas, cujos principais impulsionadores foram Botista Lima, Minó di Mámà, Ramiro Mendes, Pêpê Bana, José Laço e Amadeus Fontes, mas sobretudo aqueles que discretamente promoveram bailes e tocatinas de violino, entre os quais Henrique Fidjinho de Atalaia, Nenezinho de Meisanta, Ernesto Nhônhô de Amélia,  Eduino de Murro/Canal, ou as cantadêras populares de maior expressão como Ana Procópio, Bina Manzinha, Tintina Mané di Bedja, entre outras.

Ana Procópio. Foto cedida por Basilissa Lima

Em 1973, o Grupo Musical Os Apolos, de Santiago, influenciado pelo carismático e brincalhão Braz de Andrade (hoje empresário, músico e intérprete de distinção) revolucionaram o género talaia baxu incoporando nele a vertente trabessado. Esta designação vem provavelmente de brial trabessado, um dos toques das Festas da Bandeira que tem um ritmo acelerado, para as coladeras e tamboreiros atravessarem as ruas de S. Filipe. Os Apolos adotaram este ritmo frenético ao gravarem o seu primeiro disco, tendo como vocalista Secré (1955-2014). A gravação difere do padrão habitual do andamento do talaia baxu por este ser mais lento.

Além desta, outras gravações desse período, em Portugal e Holanda, envolveram Frank Mimita e José Casimiro. Mais tarde, outras gravações se seguiram, com Kim Alves e Minó di Mámá, os Mendes Brothers, Talulu e o grupo Braga Maria, entre outros.

Talaia Baxu e a sua possível elevação a Património Cultural Imaterial Nacional e sua consequente musealização ou criação de um centro interpretativo, anunciadas no início de 2022 pelo ministro da Cultura, Abrãao Vicente, podem ser os passos que se seguem na sua valorização e preservação. A autarquia local dos Mosteiros instalou já o Centro Cultural Talaia Baxu, tentando sacralizar estes propósitos conjuntos com o Governo.

E em agosto de 2022 foi aprovado pelo Parlamento cabo-verdiano o Dia Nacional do Talaia Baxu, que passa a ser comemorado, a partir de 2023, no dia 1 de Fevereiro.

Ver e ouvir

Personagens relacionados com o talaia baxu

Tradição: Botista Lima, Minó di Mámà, Henrique Fidjinho de Atalaia, Nenezinho de Meisanta, Ernesto Nhônhô de Amélia, Eduino de Murro/Canal. Cantaderas: Ana Procópio, Bina Manzinha, Tintina Mané di Bedja.

Atualidade: Ramiro Mendes, Pêpê Bana, José Laço, Talulu, Braz de Andrade, Neuza, Michel Montrond, Linkin. Principais compositores: Júlio Correia, Neves, Amadeu Fontes, Kim Alves. Grupos: Mendes Brothers, Os Apolos.

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