Mazurca

Por GN em

Grupo Pé na Tchõ, São Nicolau. Foto cedida por José Manuel Duarte Monteiro.

“Na companhia das criadas que acarretavam os mantimentos, Rompe fazia arfar o seu harmónio com mazurcas vivaces que mexiam com o corpo das raparigas…”

Do romance Na Ribeira de Deus, de Henrique Teixeira de Sousa

Por Gláucia Nogueira

A mazurca é uma de várias músicas e danças de salão que estavam em voga na Europa no século XIX e que se difundiram seguindo as rotas do colonialismo europeu. Era uma dança popular da região da Mazóvia, centro-leste da Polónia, e popularizou-se em Paris no início do século XIX. A partir daí, ganhou o mundo.

Assim como chegou a outros territórios, chegou também a Cabo Verde. Com o tempo, integrou-se nas práticas de sociabilidade e entretenimento da população local e transformou-se num  elemento do cenário cultural das ilhas. Com adaptações de aspetos musicais e coreográficos, a mazurca acabou por ser assumida pelos cabo-verdianos como um dos seus géneros musicais, parte das tradições cabo-verdianas. Tal como aconteceu, por exemplo, no Brasil ou na Martinica.

É, aliás, entre as expressões musicais de origem europeia que penetraram em Cabo Verde, aquela que chega mais viva e pujante aos tempos atuais, ao contrário da polca, do schottisch e do galope, por exemplo, que praticamente desapareceram.

A mazurca cabo-verdiana tem ritmo ternário e aparece com frequência em versões instrumentais, associada sobretudo à tradição do violino nas ilhas de Santo Antão, São Nicolau, Brava e Fogo. Nesta última, ganhou o nome de Rabolo.

Muitas das mazurcas conhecidas na atualidade são composições de autor desconhecido, que fazem parte do repertório dos violinistas que ao longo do tempo foram os artífices da transformação da mazurca de música importada da Europa numa expressão assumidamente cabo-verdiana. Mas elas também aparecem assinadas por um leque amplo de compositores, em versões instrumentais e também com letras. E são gravadas por intérpretes não necessariamente voltados para o âmbito do que é considerado tradicional. Além disso, embora se costume associá-las a determinadas ilhas, os seus intérpretes e compositores encontram-se espalhados por todas as ilhas de Cabo Verde.

A mazurca aparece com frequência referida junto com a contradança, que é uma coreografia, uma suíte de danças em diferentes ritmos, e a mazurca é uma dessas danças (ou “marcas”). Contudo, em Cabo Verde o termo “contradança” aparece também frequentemente como indicativo do género musical de determinadas composições (em geral mazurcas, ou koladeras).

História

Referências à mazurca em textos que retratam a vida em Cabo Verde no século XIX mostram-na tocada e dançada nos salões das famílias abastadas. Foi nos momentos de convívio social da elite da época que ela começou a marcar presença em Cabo Verde. Um de vários exemplos que se podem citar é a descrição de Francisco Travassos Valdez (no seu livro África Ocidental, Notícias e Considerações, de 1864) de um casamento em São Jorge, ilha de Santiago: “Concluído o jantar e tomado o café e os licores, seguiu-se a dança, e entretidos os convivas com as polcas, mazurcas e outras danças favoritas, passou-se o tempo da maneira mais agradável.”  

Apresentação da mazurca.
Fonte: Voz di Povo, 1983

Diversas descrições de bailes mostram as danças praticadas em finais do século XIX e início do século XX. Nessa época, a mazurca tinha como rivais, no gosto do público, a polca e a valsa, que aparentemente eram as preferidas. Com o passar do tempo, contudo, foi sobretudo a mazurca que se fixou no repertório dos músicos que animavam os bailes. E assim permaneceu viva, já que esses músicos levaram-na para os ambientes populares, de onde eles próprios eram originários.   

Depois do seu auge, essas expressões musicais entraram em declínio a partir de meados do século XX, diante de novas tendências que entretanto surgiram. Permaneceram durante pelo menos três décadas numa situação de obscurecimento, só praticadas nos locais mais afastados dos principais centros, como localidades rurais da ilha de São Nicolau, Brava, Fogo ou Santo Antão.

Foi só depois da independência, quando a política cultural do novo poder instituído ditava a valorização das tradições culturais populares, que as mazurcas, valsas e contradanças ganharam visibilidade pública, sendo divulgadas fora dos seus redutos rurais. Nessa época, concursos de danças incluíam a mazurca como um dos itens das danças tradicionais cabo-verdianas, grupos se formaram e crianças aprenderam a dançar na escola. A partir de então, já não eram um divertimento da elite e passaram a ser encaradas como uma tradison di terra.

Personagens associados à mazurca

Instrumental: Mochim d’ Monte, Nho Kzik, Travadinha, Ney Évora (Santo Antão); Djicai, Ivo Pires, Vuca Pinheiro, Djedjinho, Josezinho, Alcides da Graça (Brava); Mané Pchei, Maninho Almeida, Paulino Vieira (São Nicolau); Linkim, Rabolo (Fogo); Djinho Barbosa (Santiago); Bau (São Vicente).

Compositores de mazurcas com letras: Ano Nobo (Santiago); Tibau (Maio); Toy Vieira (São Nicolau); Jorge Humberto, Nando da Cruz (São Vicente); Djoy Delgado (Santo Antão).

Intérpretes: Teresa Lopes da Silva, Frank Mimita, Celina Pereira, Betina Lopes, Mariana Ramos, Talulu, Fantcha, Lura, Neuza, Lucibela, grupos Splash e Rabasa.   

Para saber mais

Músicas e Danças Europeias do Século XIX em Cabo Verde: Percurso de uma Apropriação – Tese de doutoramento de Gláucia Nogueira (2020).

Ver e ouvir

Referências:

Alves, Miguel (1987, fevereiro 20). “Cantares do povo da ilha do Fogo”. Voz di Povo.

Boletim Oficial do Governo Geral da Província de Cabo Verde.

Nogueira, Gláucia. Músicas e Danças Europeias do Século XIX em Cabo Verde: Percurso de uma Apropriação – Tese de doutoramento (2020).

Valdez, Francisco Travassos (1864). África Ocidental, notícias e considerações. Lisboa: Imprensa Nacional.

The New Grove Dictionary of Music and Musicians.

Voz di Povo.

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