Valsa

Por GN em

Rompeu a valsa nos bordões tão graves

Da guitarra. Sonhando vagamente,

Revoa o meu espírito doente

Num ângelus de lágrimas suaves

Eugénio Tavares, no poema “A Valsa”

Por Gláucia Nogueira

A valsa é uma das práticas musicais importadas da Europa para Cabo Verde a partir de meados do século XIX, tal como a mazurca, o galope, a polca e o schottisch.

Está bem documentada em textos diversos a penetração dessas músicas estrangeiras em Cabo Verde. As alusões aos estilos musicais desse período não deixam dúvida do quanto o arquipélago esteve inserido nas dinâmicas de trocas culturais que se desenvolveram ao redor e através do Atlântico nesse período. Os cabo-verdianos estiveram sempre atualizados quanto a hábitos e modas estrangeiras, através do contacto direto ou das suas comunidades emigradas.

Até por volta da década de 1940 esse conjunto de músicas e danças faziam parte das formas de entretenimento e sociabilidade no arquipélago, em particular nos ambientes da elite socioeconómica. Com o passar do tempo, foram ficando fora de moda, suplantadas por outras tendências. Ao mesmo tempo, iam sendo recriadas em espaços populares, com sonoridades já cabo-verdianizadas. Algumas delas expressões musicais mantiveram-se como prática regional.

“Geralmente gostam muito de  divertimentos, danças, com abundância e profusão de comidas, já por ocasião de festas nacionais e regozijos públicos, já com motivos privados  e  de  família. Ali  aparecem  as  senhoras  creolas  e  brancas,  filhas  da  terra,  ou  ali estabelecidas,  com muita elegância e denotando maneiras agradáveis. Nestas reuniões que têm caráter europeu dançam-se as contradanças francesas e inglesas e a valsa.

Chelmicki e Varhagen, em Corografia Cabo-Verdiana, sobre práticas musicais em Santiago

Joaquim Vieira Botelho da Costa, administrador do concelho de São Vicente de 1872 a 1893, e Chelmicki e Varhagen, autores de Corografia Cabo-Verdiana, estão entre os autores que referem essas modas musicais do seu tempo e a valsa era um elemento de destaque.

Também a “Parte Não Oficial” do Boletim Oficial revela com frequência a presença da valsa em atuações no teatro e em bailes. Um deles é descrito desta forma: “Contradançou-se, lanceirou-se, polcou-se, mazurcou-se e walsou-se sempre com grande animação até já depois de o sol estar alto, 7 horas e meia da manhã” (BO, 07.02.1874).

Além dos salões da elite, numa esfera que inclui públicos mais vastos, a valsa, tal como as outras músicas de origem europeia, era fruída em bailes para outra clientela – os chamados “bailes nacionais”, mais populares – e também nas atuações das bandas, quando estas tocavam em eventos e nos habituais concertos semanais nos coretos das praças. Na imprensa cabo-verdiana no início e meados do século XX encontram-se várias referências à presença da valsa nos repertórios das bandas.

A década de 1930, é um momento em que o novo e o antigo convivem nas práticas de entretenimento. A 1 de junho de 1937, por exemplo, o jornal Notícias de Cabo Verde refere um baile no Mindelo, ao som do repertório do jazz band, no qual se dançou “uma série ininterrupta de valsas, maxixes, mornas, sambas, blues”.

A partir de meados dos anos 1940, suplantadas pelas novas tendências em matéria de música e dança, as expressões musicais de origem europeia entraram em declínio, mantendo-se como reminiscência do passado para alguns, como elemento folclórico para outros mas, decididamente, fora das práticas correntes dos salões de baile e das casas noturnas. António Germano Lima, no seu livro Boavista, ilha de capitães, atribui à emigração a partir da década de 1960 a causa desta situação. “Perderam-se os hábitos das serenatas com o violão, este substituído pelo gravador portátil; as tocatinas foram votadas ao esquecimento […] as músicas tradicionais, como a coladeira, mazurca, contra dança, valsa e tantos outros valores culturais caíram em desuso”, refere.

Ainda assim, em alguns pontos de Cabo Verde, a valsa permaneceu, mantendo-se como um dos itens de festas em localidades de Santo Antão e São Nicolau. Mesmo no contexto do funaná, que na sua origem era um badjo di gaita, ou seja, um baile ao som do acordeão, a valsa esteve presente como um dos tipos de música que animavam os pares. Antero Veiga, num artigo sobre a música em Santiago (Voz di Povo, 14.08.1982), enumera: “As manifestações cabo-verdianas de música/dança que conheço são as seguintes: Morna, Coladeira, Batuque, Tabanca, Landu, Colá, Finaçon, Xotice, Mazurca, Contradança, e ‘Badjo di Gaita’ (com a morna, valsa, vira, marcha, ‘caminho di ferro’ e machicha).”

No documento preparatório ao I Encontro de Música Nacional, realizado em 1988, lê-se: “No mosaico de compassos, ritmos e expressões musicais que é Cabo Verde, encontramos valsas, mazurcas, polcas. Géneros europeus, calaram na sensibilidade cabo-verdiana e aculturaram-se. Não é raro, pelo contrário, que os conjuntos típicos, nas rabecadas principalmente, testemunhem essa aculturação que virá dos séculos XVIII (?), XIX e XX.”

Personagens associados à valsa

Tazinho, Luís Rendall, Vasco Martins, Bau, Ivo Pires, Vuca Pinheiro, Djicai, Grupo Pai e Filhos, Nho Kzik, Mané Pchei.

Para saber mais

Músicas e Danças Europeias do Século XIX em Cabo Verde: Percurso de uma Apropriação – Tese de doutoramento de Gláucia Nogueira (2020).


Ver e ouvir

Referências:

“O 28 de maio”, Notícias de Cabo Verde, 01.07.1937.

“Parte Não Oficial”. Boletim Oficial do Governo Geral da Provincia de Cabo Verde, 07.02.1874.

Cabo Verde/Ministério da Informação, Cultura e Desportos/Direção Geral da Animação Cultural. I Encontro de Música Nacional. Cópia datilografada, 1998.

Chelmicki e Varhagen. Corografia Cabo-Verdiana ou Descrição Geográfico-Histórica da Província das Ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841, tomo II.

Costa, Joaquim Vieira Botelho da. “A Ilha de S. Vicente de Cabo Verde: Comunicação à Sociedade de Geographia de Lisboa (1882)”. Raízes, dez. 1980, n. 7.

Lima, António Germano. Boavista, ilha de capitães (História e Sociedade). Praia, Spleen, 1997.   

Roele. “Carta a um exótico”, A Voz de Cabo Verde, 21.04.1913.

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