A tabanka, os seus sons e as músicas que inspira 

Por GN em

Tabanca. Fonte: arquivo A Semana

Por Gláucia Nogueira

Entre maio e o fim de julho situa-se a época das festividades das tabankas, uma tradição que vem de longe em Cabo Verde (em Santiago e, com menor dimensão, na Ilha do Maio). As tabankas são associações de tipo mutualista que promovem actividades de culto (rezas), sociais (por exemplo, entreajuda para construção de casas e em momentos de doença e morte) e festivas, com música, dança, refeições comuntárias e desfiles, em datas ligadas aos santos católicos. As datas em que principalmente há eventos são os dias de Santo António (13 de junho) e São João (24 de junho) e o dia da Santa Cruz (3 de maio).

Produto do sincretismo entre tradições portuguesas e africanas, esses festejos teriam surgido, no período escravocrata, a partir das comemorações do dia da Santa Cruz, quando os escravos tinham a permissão de sair à rua e festejar à sua maneira esta data do calendário católico (ver página do Novo Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro). De lá para cá, muita coisa aconteceu.

Uma história de proibições e rejeições

As referências mais antigas à tabanka datam no início do século XVIII. O historiador Sena Barcellos, na sua obra Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, cita uma carta régia de 1723 dirigida ao governador para que não consentisse “que nas festas houvesse exército de pretos forros e escravos”. 

Temendo possivelmente a possibilidade de a festa degenerar em motim, as autoridades coloniais por várias vezes procuraram reprimir os desfiles das tabankas, apontam os investigadores José Maria Semedo e Maria R. Turano, no livro Cabo Verde – O Ciclo Ritual das Festividades da Tabanca. Mas não conseguiram matar a tradição. O facto de haver várias proibições ao longo do tempo, atesta a sua permanência.

Uma pastoral do bispo de Cabo Verde em 1847, D. João Henriques Moniz, proibe a participação dos integrantes das tabankas nas festividades do dia da Santa Cruz (3 de maio) em todas as igrejas e capelas da ilha de Santiago: “(…) proibimos absolutamente com pena de Excomunhão  que apareçam nos mesmos templos, figuras mascaradas, ou em trajes imundos e irrisórios para assistirem nesta solenidade aos Ofícios Divinos e mesmo em qualquer outra hora (…)”. Os padres são ameaçados de suspensão se consentirem que os participantes das tabankas entrem nas igrejas. Além de afixado no exterior de igrejas e capelas, o documento foi publicado no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde (15.05.1847).    

Em 1916, um edital do administrador do concelho da Praia proibe as festividades, por constar que continua a existir “o antigo e perigoso uso da brincadeira chamada Tabanca, aliás proibido há muitos anos por imoral e indigno de um povo civilizado” (O Futuro de Cabo Verde, 28.05.1916).  Em 1920, segundo a obra de Semedo e Turano, após vários pedidos de autorização para a realização das festas, uma portaria autoriza as tabankas a saírem à rua, sob determinadas condições. Este período de tolerância vai acabar três anos depois, com uma nova portaria provincial a proibi-las, mas em 1927 há nova permissão. Um documento de 1944 do Arquivo Nacional de Cabo Verde mostra uma autorização do administrador do concelho da Praia para a realização das festividades da tabanka no bairro da Várzea (ver imagem).   

Além das proibições legais, a própria mentalidade vigente durante o período colonial, tendente a valorizar apenas o lado “português” da cultura cabo-verdiana, jogava contra a tabanka, e alguns intelectuais cabo-verdianos referiram-se a ela de forma depreciativa.

Em 1899, uma recente pastoral do bispo de Cabo Verde é elogiada pelo poeta José Lopes, que aponta os “bárbaros costumes de misturar o divino com o profano, que têm os habitantes da classe plebeia de Santiago” (Revista de Cabo Verde, nº 6, maio de 1899). Depreende-se do texto que, também nesta época, os padres não proibiam a entrada das tabankas nos templos e, portanto, concorriam “para a manutenção de tão selvagens comunidades”, o que o autor considera uma vergonha para a Igreja Católica, fazendo votos de “um dia ver banidas de Santiago e outras ilhas várias práticas supersticiosas, que existem, e que são indignas de um povo tão bom como é, incontestavelmente, o de Cabo Verde”.

António Arteaga refere, num artigo na revista Esperança (dezembro de 1901), que as festas das tabankas são sempre acompanhadas de batuques, e que não é raro acontecerem facadas resultantes de embriaguez. Outra referência do início do século XX, no jornal O Futuro de Cabo Verde (07.05.2016), informa sobre uma morte na sequência de uma briga entre três homens durante a festa de uma tabanka em São Salvador do Mundo, e o texto é concluído assim: “Resultado das tabancas”. Ou seja, associa-se a estas agremiações actos de violência que certamente também aconteciam em outras situações. Um outro texto na mesma publicação informa que os professores da freguesia de São Miguel pretendem fazer uma grande propaganda contra a existência das tabankas (O Futuro de Cabo Verde, 21.05.1916).

Cartão telefónico alusivo à tabanka com ilustração de Mito (2001)

Ao longo do tempo, as tabankas foram alvo de várias interdições e sofreram também com a falta de recursos e com o desinteresse das gerações mais novas, ao mesmo tempo que os mais velhos iam morrendo, como relatam antigos membros em reportagens na imprensa cabo-verdiana, em diferentes momentos. Nesse processo que se prolonga no tempo, alguns grupos terão desaparecido, mas aqueles que resistiram e chegaram à independência de Cabo Verde comemoraram esta data desfilando pelas ruas sem qualquer constrangimento. A partir de então, as tabankas foram apoiadas (embora não tanto quanto os seus responsáveis gostariam, como mostra a imprensa) e incentivadas.

Atualidade

Segundo a obra de Semedo e Turano, a tendência das tabankas é para a folclorização, para uma maior ênfase no aspecto coreográfico, por não haver um engajamento, da parte dos jovens, ao aspecto espiritual. Encontros e festivais vão nesse sentido, já que estão fora do contexto das festividades religiosas.

Tabanka da Achada Santo António, Praia, 2022. Foto cedida por Zerui Depina

Por sua vez, o antropólogo Wilson Trajano, no seu trabalho de campo em Santa Catarina e na Praia entre 2000 e 2001, observou outros aspectos e considera a realidade mais complexa, com tabankas morrendo e outras surgindo, ou renascendo. A ideia de que o desfile, que constitui o lado espetáculo, esteja a se sobrepor ao conteúdo religioso, ritual e funcional dos grupos é contestada por este investigador, que afirma ser apenas para o público externo que elas se mostram “como grupos folclorizados que atualizam formas de sociabilidade do passado para abrilhantar os eventos públicos”. E prossegue: “A única atividade da tabanca que transborda o tempo das festas e dos cortejos e é visível para os não membros parece ser a música dos búzios e tambores, que tem sido apropriada pela cultura popular de massa produtora de bens musicais para o mercado”.

Desta forma, “todos os seus complexos aspectos institucionais de ajuda mútua, o seu aparato ritual e a cosmologia que o orienta” são partilhados apenas pelos seus membros, sustenta o autor, lembrando que as tabankas “têm sido uma instituição muito importante para a organização da vida social nas aldeias camponesas e nos bairros populares na cidade da Praia”.  

Trajano, que tem vários artigos sobre este tema, afirma ainda que a tabanka é vista pelos estudiosos cabo-verdianos “como um caso exemplar de resistência africana à violência da dominação colonial, com isto se transformando num ícone da cultura nacional”. Essa idealização, refere, leva à suposição de que as tabankas desapareceriam com o fim do sistema colonial, já que não teriam a que se opor. Mas isso  não aconteceu.

Trecho do filme Songs of Badius (1989), do antropólogo norte-americano Gei Zantzinger
Tabanka da Várzea numa apresentação no centro da cidade da Praia, 2019.
Personagens da tabanka em figuras expostas no Museu da Tabanka, Assomada. Foto: Gláucia Nogueira, 2002

A tabanka como património cultural

As políticas culturais a partir da independência de Cabo Verde, postas em prática por diferentes governos, encaram a tabanka como elemento importante da cultura cabo-verdiana, chegando a candidatá-la, em 2005, à Proclamação de Obras de Património Oral e Intangível da Unesco (a candidatura, contudo, por insuficiências do ponto de vista técnico, não foi aprovada, mas em tempos mais recentes outro dossier de candidatura começou a ser elaborado).

Entretanto, o Instituto do Património Cultural realizou um inventário das tabankas existentes na atualidade, que resultou no Roteiro Nacional da Tabanca, e em 2019, deu-se a classificação da tabanka como Património Cultural Imaterial Nacional de Cabo Verde.  

Outro item significativo quanto à patrimonialização da tabanka são os museus criados com este tema. O primeiro, criado em 2000, situava-se na cidade de Assomada, município de Santa Catarina (no edifício onde mais tarde foi instalado o Centro Cultural Norberto Tavares). Depois de alguns anos em funcionamento, foi desativado e em 2010 nasceu um novo Museu da Tabanka, situado na localidade de Chã de Tanque, no mesmo município.

Apropriações da música da tabanka e recriações

Alusões à tabanka e experiências de estilização do seu ritmo têm aparecido ao longo do tempo em trabalhos musicais de vários artistas e grupos cabo-verdianos. A mais antiga aproximação à tabanka por um grupo de música popular de que há registo discográfico é a do grupo Kolá, com a composição “Tabanka”, com letra a exaltar o PAIGC, que aparece no LP Guiné Bissau, editado em 1979 em Portugal mas gravado 1976 nos estúdios da rádio em São Vicente. A gravação consta da compilação Cap Vert: Anthologie 1959-1992.

Os Tubarões, por sua vez, lançam em 1980 um LP intitulado justamente Tabanca e no qual, além da composição que dá nome ao disco, encontramos a homenagem do poeta e compositor Kaká Barbosa à tabanka do bairro da Achada Grande, “Tabanca d´Tchada Grandi”, em que descreve o seu cortejo comandado por Palau, antigo rei deste agrupamento. Outro exemplo é o grupo Finaçon, como tema “Tabanka (Puera n’odju)”, CD Farol (1992). Por sua vez, em Rei di Tabanka (1999), segundo CD do grupo Ferro Gaita, o ritmo dos tambores e o som do búzio surgem numa homenagem a vários reis e grupos da cidade da Praia, na com posição que dá título ao disco.  

Lura, com “Tabanka” (de Orlando pantera), no álbum Eclipse (2009); o grupo Rabasa com “Tabanka”, no CD Pertu di Bo (2004); Vadú, com “Tabanca” (da sua autoria), no álbum Nha Raiz (2004);  Elida Almeida, com “Bersu d’oru” (CD Djunta Kudjer, 2017) são outros exemplos. Mais recentemente, Adê da Costa com o tema “Tabanka Santa Cruz” mostra integrantes da tabanka da ilha do Maio. E Ari Kueka faz uma alusão ao som da tabanka, na sua composição “Mã Bia” (Sampadiu, 2021). Entre outros, desta lista que não pretende ser exaustiva, há a referir a gravação de “Tabankamor” (Mário Lúcio) pelo Simentera.

Em alguns videoclipes, como é o caso do de Elida, do Simentera e de Adê da Costa, a performance dos artistas inclui a participação de membros dos grupos de tabanka, devidamente trajados.

Há ainda a referir o trabalho experimental com sintetizadores a partir de músicas tradicionais de Eutrópio Lima da Cruz, com duas obras em que está presente a sonoridade da tabanka: A Mi N Ta Monda (1991) e Ilhas Barrocas (2000). E na composição de Vasco Martins “Tabanka inimaginável tabanka” (CD Quiet Moments, 1992).

À parte a evocação da tabanka em determinadas gravações, seja na letra, na melodia ou no ritmo, observa-se atualmente em depoimentos de determinados artistas, relativamente a composições autorais, a afirmação “compus uma tabanka”, “gravei uma tabanka”, como se a palavra designasse um género musical. Ainda que isto ainda não tenha acontecido, dado o reduzido número de peças musicais nessa linha, existe a tendência de apontá-la como tal, mesmo antes de acontecer.

A antropóloga Juliana Braz Dias aponta na sua tese sobre a morna e a koladera, citando Wilson Trajano, que a tabanka tem sido transformada, sobretudo entre os jovens, em mais um estilo de música cabo-verdiana. “Quando instituições dessa dimensão são reduzidas à noção de gênero musical, não podemos falar ainda de um género autónomo, como os produtos da indústria cultural. Mas é de grande interesse a investigação desses casos para a compreensão do processo de cristalização dos gêneros musicais”, escreve.

Quanto à música da tabanka propriamente dita, enquanto recolha etnográfica no terreno, aparece com a Tabanka da Várzea no volume dedicado a Sotavento do disco duplo Cap-Vert un Archipel de Musiques (Ocora, 2000).

Para saber mais

  • Cabo Verde – O Ciclo Ritual das Festividades da Tabanca, livro de José Maria Semedo e Maria R. Turano, Spleen Edições, Praia, 1997.
  • “Patrimonialização dos artefatos culturais e a redução dos sentidos”, artigo de Wilson Trajano, em Memórias da África: patrimônios, museus e políticas das identidades (org. Livio Sansone), EDUFBA, Salvador, 2012.
  • “Por uma etnografia da resistência: o caso das tabancas de Cabo Verde”, ”, artigo de Wilson Trajano em Série Antropologia, vol. 408, Brasília: DAN/UnB, 2006.
  • Roteiro da tabanka
  • Museu da tabanka

Ver e ouvir

Referências:

“Desordem que ocasiona uma morte”. O Futuro de Cabo Verde 07.05.2016.

“Factos & boatos – As ‘tabancas’”. O Futuro de Cabo Verde, 21.05.1916.

“Factos & boatos – Um edital digno de elogio”. O Futuro de Cabo Verde, 28.05.1916.

Almeida, José Maria. “Proibição, pela Igreja Católica, de tabancas nas festividades da Santa Cruz”. A Nação, 29.04.2021.

Arteaga, António. “Tabancas”. Esperança (dezembro de 1901),

Dias, Juliana, Braz. Mornas e Coladeiras de Cabo Verde: versões musicais de uma nação. Tese de Doutoramento, Universidade de Brasília, 2004.

Lopes, José. “Parochos”. Revista de Cabo Verde, nº 6, maio de 1899.

Nogueira, Gláucia. “Tabanca, a tradição de resistir”. Paralelo 14, junho de 2002.

Semedo, José Maria; Turano, Maria R. Cabo Verde – O Ciclo Ritual das Festividades da Tabanca. Praia: Spleen Edições, 1997.

Trajano, Wilson. “Patrimonialização dos artefatos culturais e a redução dos sentidos”. Em Memórias da África: patrimônios, museus e políticas das identidades (org. Livio Sansone). Salvador: EDUFBA, 2012, pp. 11-40.

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